Reflexo

Não saía do quarto há, praticamente, dias. Já nem se lembrava de como era o roçar do Sol na pele. Se esbarrasse no pai ou na mãe na hora de pegar comida, era só falar um "oi", se fosse na tia, não falava nada (e que diferença faria pra ela, que já não se lembrava dele e nem de si mesma?). Era melhor assim; de umas semanas pra cá, todo diálogo que se estendia por mais de três frases acabava em perguntas como "Aconteceu alguma coisa?", "Alguém lhe fez algo ruim?"... Isso o tirava do sério.

Naquele fim de tarde em particular, Daniel decidiu dar uma olhada no mundo dos vivos. Antes de sair, leu a última anotação que tinha feito; um trecho tirado do exemplar surrado que ganhou de seu amigo Marcelo:

"O mundo nada mais é que o reflexo dos que vivem nele, esses, por sua vez, nada mais são que o reflexo do que querem deixar no mundo."

Será que ele não poderia, simplesmente, ter se transformado num reflexo vazio e maldito, assim como o mundo?

Foi ao lugar que mais gostava, o mirante da cidade. Tinha decidido que sua alma, caso tivesse uma, morava ali. Naquele momento, sentiu-se embriagado de raiva, tristeza e solidão. Se perdeu no horizonte e conseguiu listar quatro maravilhas antes de tomar a decisão. Em ordem, tais maravilhas o tomaram em seu colo:

Primeiro, as luzes. As estrelas que caíram do céu e agora formavam o cenário da cidade que não dorme. A vontade insaciável do impossível e a ilusão do refúgio que vendem aos descrentes;

Então veio o frio, daqueles que cortam as tripas mas nos faz sentir vivos na descida aos infernos;

A dor rápida e penetrante que havia tirado sua melancolia às marteladas, porém que levou junto seus motivos e razões, e então;

A paz de quem se permite deixar; do descanso que só quem sabe que está quebrado sabe usufruir.

A porta do quarto nunca mais abriu. Ninguém mais leu aquela anotação. Sua alma jamais deixou o mirante.

Carolina Lima
Enviado por Carolina Lima em 01/07/2018
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