TENÓGE

Tenóge, ou melhor, Antenógenes Meirão nasceu em Bom Conselho de Papacaça, interior de Pernambuco. Filho único de Neinha e Antenor, teve como padrinho de batismo seu tio Clóvis Meirão, 1º Sargento da Polícia Militar de Alagoas, subcomandante do Destacamento de Palmeira dos Índios.

Neinha Formosura. Era assim chamada nas conversas de bar, entre os que deixavam cair o queixo e o copo, quando a viam passar. Jovem, ainda com 23 anos, engravidara-se aos 16. Viçosa, bem cuidada, cobiçada pelos nativos e visitantes. Clóvis, também, não conseguia esconder a paixão pela cunhada. Em Bom Conselho, hospedava-se na casa do irmão e passava o tempo curtindo – de pertinho - a voz, o hálito, o perfume e a graciosidade de Neinha. Apesar do ostensivo “arrasta-asa” de Clóvis, Antenor fazia que nem ligava. Segurava-se na elevada admiração e no sincero respeito pelo irmão. Tinha também outras razões para sua passividade. Clóvis sempre levava mimos para a cunhada e o afilhado. Deixava, inclusive, uns trocados no bolso de Antenor para ajudar nas despesas de casa.

Sargento Meirão orgulhava-se de sua farda e de seu passado como membro da famigerada Patrulha Volante que perseguiu Lampião e seu bando até a morte.

Só tirava a farda, a arma da cintura e as medalhas condecorativas para dormir e tomar banho. Passava horas contando vantagem de seus feitos. O menino Tenóge ouvia o padrinho com profunda admiração e fazia-lhe perguntas provocativas de seu orgulho. Segundo sua garganta, na vitoriosa batalha contra o bando de Lampião - só ele – teria matado mais de vinte. Não errara um só tiro. Nunca fracassara nas missões de captura de bandidos e matadores de aluguel. Trazia o cabra vivo ou morto. Daí, as medalhas que ostentava.

Só não contava que, certa vez, embrenhado na caatinga, em perseguição a Carcará Capador, um cruel bandido, levara um tiro nos testículos e adjacências. Carcará Capador, já nas unhas de Clóvis, conseguira escapar para nunca mais ser visto naquelas bandas do sertão. Sargento Meirão dizia ter-lhe acertado um tiro na boca durante a refrega de disparos, o que certamente lhe teria feito bater a caçoleta e ser consumido por urubus.

Antenor que visitara Clóvis no hospital, logo após esse episódio, vira o grande estrago feito nas intimidades do irmão. Era coisa para deixar cabra capado ou impotente. No mínimo, roncolho frio. Talvez, por isso, não desse bola pros possíveis ciúmes. No máximo, tinha o irmão como um “sócio sem voto”, naquele negócio.

Sargento Meirão não tinha filhos nem herdeiros. Praticamente, adotou o afilhado Tenóge. Acolheu-o em sua casa e matriculou-o no grupo escolar em Palmeira dos Índios. Com o falecimento de sua esposa - vítima de “barriga d’água” - e suficiente tempo de serviço, pleiteou e conseguiu reforma militar na patente de 1º Sargento.

Aos doze anos, Tenóge soube da morte de seu pai, picado por jaracuçu, quando fazia roça de mandioca. O tio-padrinho fez questão de custear e participar pessoalmente do funeral. Fretou o carro de praça de Amaro e levou o afilhado consigo.

Clóvis não perdeu tempo nem oportunidade. Mal enterrado o irmão, iniciou as tratativas para acolher Neinha - a sempre amada - como esposa. Sem dar chance de resposta negativa, anunciou que voltaria para pegá-la e fazer a mudança, logo após a missa de sétimo dia. Apesar da triste perda repentina do irmão Antenor, retornou a Palmeira dos Índios com o coração em festa, recheado de paixão. Grandiosos planos futuros, começando pela reforma da casa e do sítio onde morava. Construiria piscina, represaria um riacho para fazer cachoeira, ampliaria o pomar para atender aos gostos de Neinha etc. Era só deixar passar o luto. Combinaria, com Frei Cassiano, a data do casamento. Gostaria de fazê-lo no seu próprio sítio, com ares de solenidade e em clima de grande festa.

À revelia de Neinha – já considerada noiva - programou fazer sua mudança para Palmeira dos Índios na mesma oportunidade em que selaria seu noivado, sob atmosfera romântica. Pensou nos detalhes: antes de embarcar os móveis no caminhão do compadre Zé Madeira, ele chegaria no automóvel de Amaro. Aguardaria a saída solene da noiva de sua casa, vestida de branco. Já fora do auto, iria a seu encontro para abraçá-la e oferecer-lhe um lindo buquê de rosas vermelhas. O momento, cheio de amor, marcaria o compromisso de casamento.

Onze dias passados, fretou o caminhão, para transportar a mudança, mais o automóvel para conduzir os noivos. E lá se foram. Tenóge e ele – chique – dentro de um terno branco, tendo na mão o ramalhete de rosas, sonhando o que nunca sonhara.

Pouco mais de uma hora era o tempo de viagem. Chegaram a Bom Conselho de Papacaça, antes das nove da manhã. Estacionaram em frente à residência da viúva. Buzinaram. A expectativa era ver Neinha abrir a porta da frente e mostrar-se toda acanhada como noiva prometida.

Nada!

Clóvis saiu do auto e resolveu bater na porta e na janela. Nada! Reforçou as batidas. Também nada. Sentiu a porta destrancada ao girar a maçaneta. Adentrou e chamou por Neinha. Em vão! O quarto dela não parecia arrumado nem revirado que pudesse sugerir luta corporal ou abandono do local a pulso. Seu cacoete de militar ainda o levou a procurá-la debaixo da cama, no guarda-roupa e em todos os demais cômodos; até no quintal.

Achou na mesa da sala, um pedaço de papel rabiscado a lápis, que dizia: “Clóvis, fugi com Caubói do Sertão. Peço perdão. Não queria ser apenas uma boneca endeusada. Conheço você na intimidade. Não ia dar certo”.

Profundamente desiludido e abatido, reconheceu suas limitações, dobrou o bilhete e guardou-o no bolso do paletó. Ainda passou outra vez no quarto. Queria sentir o cheiro que ficara de Neinha preenchendo o ambiente, no ar, no lençol. Delicadamente, repousou as flores sobre o travesseiro da amada, ainda com a fronha amarrotada pela linda face, jamais a esquecer.

Sem dizer palavra, afrouxou o nó da gravata, reembarcou no carro de Amaro e ordenou-lhe regressar a Palmeira dos Índios. Ao cruzar com o caminhão do compadre Zé Madeira, vindo na direção contrária, deu-lhe a contraordem, informando-lhe não haver mais mudança a fazer.

Tenóge, ainda no banco traseiro do carro, também mudo ficou. Curioso, perdido, ousou indagar:

- E minha mãe, que aconteceu, Padrinho?

Clóvis sacou do bolso e deu-lhe a ler o bilhete como resposta. Tenóge caiu em lágrimas. Acariciando a cabeça do afilhado e mirando a paisagem seca da caatinga, para disfarçar seus próprios olhos vermelhos e encharcados, balbuciou com voz embargada:

- Segure firme, filho. Homem não chora!

Caubói do Sertão era bandido renomado, raramente visto cara a cara. Cruel, achacava fazendeiros, vendendo falsa segurança contra suas próprias ameaças. Assaltava comerciantes e criadores, usurpando-lhes mercadorias, gado, cavalos, porcos etc. Não hesitava em maltratar, torturar e matar quem lhe oferecesse resistência. Fazia o estilo caubói. Usava um lenço preto a cobri-lhe a face do nariz para baixo e chapéu de aba larga, quebrado na testa, para ajudar-lhe no anonimato. Sempre ladeado por jagunços.

Achando que Neinha pudesse ter sido raptada, Clóvis pensou até em correr atrás. Desistiu e buscou alternativa para tocar sua vida.

Construiu e instituiu uma academia para formação de atletas em artes marciais. Luta livre, na época. Passou a treinar e selecionar lutadores para competições. Entre eles, o afilhado Tenóge que, aos dezoito anos, já tinha corpo adulto e imponente musculatura. Mostrara-se bom de briga e de luta. Ganhou fama, tendo arrebatado alguns títulos locais e regionais.

Clóvis patrocinava e arrancava patrocínio comercial para seus atletas, levando-os a competições estaduais, regionais e nacionais.

Em todo Nordeste, só a Academia Gaviões de Aço, de Feira de Santana/BA, comandada por um tal Bicho Louco, competia em fama e títulos com a Academia Meirão, de Palmeira dos Índios.

Não tardou, Bicho Louco desafiou Meirão para uma noitada com “card” de cinco confrontos, sendo o último reservado para os dois melhores lutadores das academias. Acertados com os patrocinadores e a Liga, o evento foi programado para a Quadra Coberta da AABB, em Recife, PE.

A duas primeiras lutas foram fracas e terminaram empatadas. Meirão venceu a terceira por nocaute e a quarta por desclassificação do adversário. A última luta era o esperado confronto entre “Tenóge-Touro” e “Gavião Pena Branca”. Ambos com cartel de invencibilidade em nove combates.

Tenóge perdeu o primeiro round. Caiu, atingido por um pontapé no pescoço. Quase cai uma segunda vez por joelhada na coxa. Durante o intervalo Clóvis não sentiu firmeza em seu pupilo. No segundo round, Tenóge estava praticamente imobilizado na lona, por uma forte chave de braço. Quando ia dar as três batidas de desistência, olhou para o lado e viu sua mãe com a cabeça colada no ringue, a encorajar:

- Força filho. Ganhe essa luta por mim.

Tenóge extraiu forças, ânimo e técnica não se sabe de onde nem como. Aplicou uma precisa chave de pernas, passou para cima do adversário e fulminou-o, em nocaute, com uma forte cotovelada.

Neinha, eufórica, subiu ao ringue, abraçou Tenóge e ergueu o braço de seu filho vencedor. Isso irritou profundamente Bicho Louco que também subiu ao ringue. Tudo indicava ser o mesmo Caubói do Sertão, com seu infalível lenço a cobrir a face. Bicho Louco espancou Neinha em público, fazendo-a desmaiar. Tenóge revidou. A briga terminou envolvendo todos os lutadores e auxiliares. Clóvis também entrou na confusão e num rápido puxão removeu o lenço da cara de Bicho Louco.

Para sua surpresa, não era outro se não o cruel Carcará Capador que, em época ida, lhe fizera impotente e levara, como troco, chumbo suficiente para deixar-lhe com a boca eternamente aberta na lateral.

Clóvis levou o bandoleiro para o xilindró e Neinha, enfim, para sua casa.

Neinha confessou a Clóvis que, dias depois de sua saída de casa, retornara a Bom Conselho, para desfazer dos imóveis. Viu o buquê sobre seu travesseiro. Acariciou e beijou as rosas – mesmo que já murchas. Chorou, sabendo quem as havia deixado.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 04/07/2018
Código do texto: T6381678
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.