O choro de Yemanjá

"Ele caminhava torto, feio.

A vizinhança não o suportava. Temia-o.

Os irmãos queriam interná-lo,

a mãe protegê-lo, o pai matá-lo.

Era desengonçado e conversava consigo, sem parar. Ninguém, nem ele entendia seus sussurros. Sua boca contorcia-se esquisitamente, provocando risos, escárnio e nojo. Nunca piedade. Seu único(a) amor, amigo(a) e companheiro(a) foi sua mãe.

Algumas pessoas, quando percebiam a mãe e o filho andando pelas ruas, entravam e fechavam as portas. Algumas se benziam e rezavam. Janaína percebia, mas a preocupação com seu filho era maior. Ele estava seguro. Isso que importava. Ela sofrera a vida inteira no campo. Era boia-fria. Sentiu na pele a crueldade humana, a exploração, o desprezo dos patrões, a arrogância dos ricos, as trapaças no ambiente de trabalho, o machismo, além dos diversos estupros, dos quais nasceram seus dois filhos. A indiferença da comunidade não a preocupava.Todos os dias acendia uma vela à Yemanjá e à Pomba Gira para que seu filho mais novo, depois de sua partida, fosse curado, porque sem ela, o que seria dele naquela situação?

Ser rejeitada por dedicar-se exclusivamente a um filho problemático era motivo de orgulho para ela, não um fardo.

Numa manhã de domingo, após a missa, um corajoso homem, devoto de Maria, mãe de deus, resolveu fazer justiça para a comunidade

Jogou uma bíblia no chão e, suplicando aos céus,

desejou que aquela cidade pacata, ordeira e com poucos problemas sociais, fosse curada de todo o mal( que mal? )

Em frente à igrejinha, o deficiente, ao lado de sua mãe, caminhava ao seu modo, cambaleante.Tropeçou na bíblia e caiu. Dali, nunca se levantaria.

A mãe chora em frente à igreja. Ninguém o socorre. O menino agoniza sangrando durante doze horas até morrer. Duas horas depois do corpo ser levado, não suportando a ausência do filho que, mesmo contra a vontade de todos(as), adotou, ela INFARTA. O menino era negro, deficiente físico e tinha síndrome de down . Quando encontrado, trajava roupas femininas. Era filho de Yemanjá e Pomba Gira , dizia a carta que estava na fralda da criança!

Os irmãos agradecem ao santo homem pela cura de seu irmão bastardo!

Partem para a Europa !

O marido volta à sua cidade natal. Desde a adoção, dizia que de lá nunca devia ter saído.

Na missa de sétimo dia, a igreja está lotada. Todos falam daquele pobre adolescente, sempre feliz e com trejeitos estranhos que escondiam a inocência de uma profunda beleza espiritual. Era alguém sempre amparado pela igreja e a comunidade, porém maltratado em casa, especialmente pela mãe, que morreu de remorsos pelos castigos que infligia ao filho, cuja doença não compreendia.

Um misto de revolta e lamentação instalou-se coletivamente naquela caridosa celebração. E, entre elogios e paparicações ao morto, um salva de palmas ao responsável por aquela festa maravilhosa: o devoto de Nossa Senhora, o homem da bíblia, condecorado e benzido pelo padre na ocasião.

* Crônica fictícia. Qualquer semelhança com pessoas, situações e circunstâncias reais não é mera coincidência.

* Crônica fictícia. Qualquer semelhança com pessoas, situações e circunstâncias reais não é mera coincidência.