Ver o Peso deste Povo

Vejamos o Ver-o-Peso, sem nos determos na estranheza da frase, sim, vejamo-lo de verdade, de perto, sintamo-lo à nossa volta e sob nossos pés, deixemo-nos envolver pelos ventos que agitam as ocras águas da baía de Guajará. Respiremos esse ar que invade suas margens e adentra os espaços desta feira singular, propagando os odores da multidão em rebuliço. Odores de gente em corpos suados no calor amazônico; aspiremos esses aromas entrelaçados aos exóticos ácidos, aos doces e aos salinos. Deixemo-nos envolver pelos cheiros de verdes e amarelos bem brasileiros, das folhas de maniva moída e do tucupi que se misturam aos perfumes do suco de açaí ou do cupuaçu; do cheiro dos umaris e das mangabas nos paneirinhos. Deixemos que nossos olhares sejam atraídos pelo colorido das mangas e dos cachos de pupunhas; pela arrumação dos lotes de bacuris, uxis, araçás, mamões, abacates e maracujás nos tabuleiros. Sintamos a fragrância do cheiro-verde, dos amarrados de salsa, coentro, cebolinha, chicória e de um punhado de pimentas amarelas e vermelhas. Passemos às nossas sacolas os limões e todos esses ingredientes que formam esse kit à moda cabocla que nos oferecem os ambulantes como tudo necessário no trato do peixe, temperos indispensáveis à caldeirada de pescada-amarela, de filhote ou de gurijuba, conforme a nossa preferência. Atraem-nos também os odores dos camarões expostos ao sol e do pirarucu seco e salgado em mantas, na sugestão para o almoço de um largo pedaço preparado com leite de coco – e nos sentimos com água na boca. Não disfarcemos fazendo de conta que isto ou aquilo não nos provoca, que não percebemos o forte apelo à prova das iguarias que nos rodeiam, que nos instiga a imaginação e incita nossos desejos para a degustação desta nossa culinária tão brasileira, tão cabocla paraense. Talvez decidamos nas bancas dos salgados pelos ingredientes para uma boa feijoada... Em qualquer dos casos voltaremos para casa com a certeza de que a visita à feira se fez em bom proveito para um excelente almoço. Porém, como nada está decidido, continuemos nossa visita mordiscando uma castanha-do-pará entre bocados à mão de farinha-d’água torradinha. Andemos pela feira e desfrutemos de seu clima e sua aura mesclada de trabalho e prazer, conscientes de que todas as delícias daquele pequeno mundo nos fazem crer num legado dos deuses e das deusas das águas e das florestas, para que compreendamos esse néctar como parte das dádivas que nos oferece a mãe natureza.

Passemos pelas bancas de comidas, onde fumegam grandes panelas; em algumas vendem e servem em cuias o tacacá; noutras bancas, cuias com mingau de farinha de tapioca simples ou misturado com banana, arroz ou milho, conforme o nosso gosto. Em outras nos oferecem açaí em tigelas e uma variedade de comidas prontas, um cardápio que nos faz pensar bem na escolha, naquele prato do qual sentimos vontade nesse momento – pato no tucupi, maniçoba, caruru, vatapá ou peixe frito. Bebidas, sucos, cerveja, cachaça pura ou com raspa-raspa: de coco, de maracujá, de limão. Se de gosto, leite de onça.

Continuemos a andar entre a multidão de gente que se aglomera nessa feira livre que não sabe o dia da semana, todo dia é sempre dia de feira, é tempo de fartura, sob o sol ou sob a chuva. Todo dia é dia de Ver-o-Peso, com seu mercado de peixe, com suas bancas cobertas, com seus habitantes que de tudo vendem a outros que tudo compram. Adiante as barracas de plantas ornamentais ou mudas de árvores frutíferas. Mais além estão as barracas de utilidades, de miudezas, de roupas, calçados e artigos para viagem. A própria existência da feira em si pressupõe a vida, o trabalho e o sustento dos que ali passam seus dias e com ela sonham em suas noites, ali auguram na faina cotidiana a concretização de seus anseios. Ali estão para oferecer aquilo que é procurado e escolhido pelos olhos dos que frequentam esses corredores ao ar livre, nativos ou não, gente de casa – ou de passagem, turistas que vasculham as vendas de artesanato na busca de um vaso marajoara ou outro souvenir da amazônia brasileira. Gente de fora que se encanta com os apegos da alma cabocla, que se admira com a variedade exposta nas bancas com amontoados de folhas, de sementes, de lascas de árvores, de vidros com óleo de copaíba ou andiroba, de gordura de jacaré, de cascavel e outros lenitivos ou de cura para todos os males. Visitantes que se surpreendem com a produção dos preparados especiais para o banho de descarrego e de outros eficazes contra inveja e mau-olhado; com os fortificantes rotulados, remédios contra o desânimo, contra o cansaço, alguns especiais que livram do quebranto os belos curumins e as belas cunhantãs; nativos ou visitantes que examinam as garrafadas e ouvem dos vendedores a finalidade de cada uma, se para a saúde e vigor dos homens ou para o equilíbrio hormonal e fertilidade das mulheres.

Para a solução de problemas de amor ou dinheiro, lá estão os amuletos, com excelência o olho de boto entre os adornos, entre os colares e as pulseiras de contas e sementes; em meio às aromáticas infusões combinadas de ervas, raízes e cascas, perfumes de grande poder atrativo na conquista da mulher difícil ou do homem arredio: Chega-te a Mim, Chora nos Meus Pés, Pega Não Me Larga, Chama Dinheiro, Vence Tudo. Coloca-se uma gota com a ponta do dedo atrás da orelha – bastante para que surta o efeito desejado – e se faz imprescindível o segredo do uso e outros cuidados recomendados pelos entendidos. Assim como há porção adequada de outras essências para adição à água do banho infalível que trará a sorte nos negócios, nas demandas. Fortalecimento da fé e da esperança na crendice popular, no feitiço, na magia.

Continuemos a procurar aquilo que queremos, logo acharemos. À nossa volta há vozes que entoam sedução e promessas:

– Que você quer, meu bem? Aqui se garante boa qualidade! Aqui está o mais vantajoso! Aqui o mais barato!

Entretanto, vamos nós, entremos no mercado, vejamos o que há entre o palavreado alto dos peixeiros que apontam para suas mercadorias, ajeitando a tabuleta de preço para nos chamar a atenção. A qualquer olhar mais interessado alargam com os dedos o corte feito nas barrigas das douradas, dos filhotes ou das pescadas. Abrem-lhes as guelras, mostram-nas em vermelho ainda fresco. Há uma zoadeira geral, um atordoamento de falas ecoando entre os aparadores, e tudo contribui para a procura da melhor oferta ou para a decisão do comprar logo este. Depois de algumas voltas pelo interior do mercado, já o deixamos, voltamos à feira e à condução para casa, peixe na sacola, inteiro ou em pedaços. Até a próxima visita, peixeiros com seus aventais salpicados de escamas grudentas e melados de gordura, propagandistas de voz alta, cheios de bazófias com seus terçados vibrantes e certeiros. Até outra vez, vendedores de caranguejo, de camarão fresco, de temperos ou de sacolas. Até logo, peixeiros com suas pescadas e seus filhotes. Até outro dia, tucunarés, maparás, bandeirados, traíras, piramutabas, tambaquis, pacus, curimatãs, tamuatás e cachorros-de-padre. Tchau, peixe-serra.

Durante o retorno ficamos com a impressão de que o Ver-o-Peso não nos atrai apenas às compras. Convida-nos a percorrer um espaço incomum, em meio à graça de seu encantamento, às suas peculiaridades, para sentirmos bem perto a riqueza dos frutos do trabalho incessante e avaliarmos o peso dessa gente de pés calejados, de braços doloridos, de corpos suados e tez bronzeada. Nossa brava gente do norte do Brasil ou de outras plagas que deste fez seu lar. Do continente e das terras banhadas com águas atlânticas, ou das ilhas cercadas pelos rios que cortam a imensa e exuberante floresta.

Gente de muitas feições, formando um povo só enraizado nesta terra, convivendo na preservação da cultura nortista e falando o linguajar papa-chibé. Embaralhado de origens, de peles, de olhos, de cabelos. Acima de tudo um trocar de mãos no labor e nas vozes de lamentos ou cantares. Ou nos risos abertos de um povo a enxugar sempre suas lágrimas na confiança de novos dias em felicidade e no orgulho de sua rica e abençoada Belém do Grão-Pará.