As alpercatas

Adorava quando do ganhava uma “apragata” nova.

- Não é “apragata” menino! É alpercata! Vivia sendo corrigido por minha mãe.

- E por que não pode ser apragata? O Zeca de dona Rita também chama assim...

- Já falei, não é apragata! É al-per-ca-ta!

- Ta certo. Al-peeeer-caaaaa-ta! Repetia demonstrando um certo ar de irritação e indignação pelo método de ensino impositivo e pouco pedagógico de minha mãe. Birra de menino rebelde talvez.

Quando lançaram as sandálias havaianas, foi uma revolução. Esse modelo de calçado além de funcional, tinha preço acessível e se popularizou ao ponto de a marca virar sinônimo do produto. Eu ganhei um par que durou uma eternidade. Ao contrário das alpercatas de couro, elas podiam ser lavadas e deixá-las sempre com aparência de novas. Achava o máximo, caminhar na areia e ficar admirando o desenho do solado nas pegadas, formado em alto relevo deixando a impressão de uma obra de arte abstrata elaborada por um artista qualquer. Quando um dos cabrestos ( era assim que a gente chamava as correias) se rompia, a gente sempre dava um jeito de prendê-lo novamente à plataforma utilizando um prego ou um arame. Era um artifício que dava sobrevida às nossas “apragatas” ` quer dizer, al-per-ca-tas, até que se pudesse comprar outro par ou novas correias que na época não eram fáceis de encontrar.

Até como instrumento de tortura, as sandálias havaianas eram mais condescendentes. As chineladas dadas por minha mãe, que usava esse modelo de sandália, não doíam nem metade das que eram dadas por meu pai que usava chinelos de couro com solado de borracha de pneus. Ambas deixavam marcas na pele. As dos chinelos de meu pai só sumiam depois de algumas horas, ou dependendo da intensidade com que fossem desferidas, podiam levar até alguns dias. Já as das havaianas da minha mãe sumiam quase que simultaneamente com os nossos alaridos produzidos durante a aplicação do ato punitivo. Até hoje, lembro de umas “lamboradas” aplicadas por ela, como punição por não haver sido identificado quem de nós três ( eu e duas irmãs que também sofreram a mesma pena) danificou uma toalha de mesa, feita de plástico fino e barato, que na ocasião apareceu com um corte, aparentando ter sido feito com uma lâmina de barbear (gillette), instrumento que normalmente utilizávamos para apontar lápis, sendo esse o álibi que induziu minha mãe a tão descabida, injustificada e sumária condenação, sem direito a apelação ou recurso extraordinário para instância superior: O Supremo Tribunal Paternal. Essas chineladas, ao invés de marcas físicas, por muito tempo deixaram marcas indeléveis na minha memória. Não aceitava a idéia de se punir um inocente, em vez de absolver um culpado. Coisas que minha pobre mãe jamais iria entender. Já teve o meu perdão, afinal, só depois de homem feito, é que fui entender que muitas de suas lições e ensinamentos me fizeram mais forte, mais ético, mais íntegro e principalmente mais consciente de que as chineladas de mãe, não dói nem um por cento, das chineladas que a vida dá na gente.

P.S Hoje, os dicionaristas atestam que o vocábulo “apragata” não esta errado. É sinônimo de sandália baixa ou chinelos. É uma corruptela de Alpargata e que quer dizer a mesma coisa que alpercata.

Adenildo Aquino
Enviado por Adenildo Aquino em 11/07/2018
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