MAX

Max tinha tudo para ser um cidadão triste, odioso e descompensado em seu comportamento. Aos sete anos de idade presenciou um triste e criminoso espetáculo de truculência policial em sua residência. Era pouco mais de dez da noite, todos já com roupa de dormir, ele preparando seu material escolar para o dia seguinte, quando esmurraram a porta principal. Temendo a ameaça de arrombamento, sua mãe destrancou-a. Seis policiais do exército, armados com fuzis, pistolas e baionetas invadiram o ambiente. Dois outros montavam guarda na porta dos fundos para garantir qualquer inventiva de escape. Nem perguntaram pelo dono da casa. Foram diretamente à suíte do casal, algemaram e encapuzaram Luiz Márcio. Aos trancos e empurrões sequestraram-no, ainda de pijama, e levaram-no para nunca mais voltar. Enquanto isso, o resto da tropa ocupava-se em escarafunchar gavetas, examinar e derrubar livros, revistas e publicações, até então caprichosamente arrumados na rica e bem cuidada biblioteca daquele pacato professor de sociologia. Xingamentos e gestos raivosos intensificavam-se ao tempo em que não achavam o procurado. Tomados de ira, quebraram estatuetas, rasgaram e destruíram a pontapés e baionetas valiosas telas de artistas famosos, inclusive, recentes obras assinadas pela própria Helena para uma já agendada exposição no Copacabana Palace.

Frustrados, foram-se os agressores. Não sem antes prometerem retorno para prosseguir a busca, caso necessário.

Abraçados, mãe e filho choravam preocupados pelo que pudesse estar ocorrendo a Luiz Márcio. O horrendo espetáculo – em si - e o quadro desolador deixado no interior do apartamento fundiam-se para compor uma atmosfera de tristeza, que viria a perdurar por largo tempo.

Artista plástica renomada e professora na Escola de Belas Artes, Helena provinha de família tradicional, tendo herdado bens e recursos suficientes para viver confortavelmente, em amplo apartamento defronte ao mar, em Copacabana. Seu esposo Luiz Márcio, doutor em sociologia, tinha seu nome na autoria de vários livros, publicações periódicas e anais de congressos e simpósios. Seu último livro, já revisto e pronto para edição e publicação, ficara sobre a escrivaninha da biblioteca dentro uma pasta de papelão, amarrada pelos cantos. Felizmente, foi das poucas coisas deixadas intactas pelos trogloditas da repressão. Max sabia tratar-se de livro que seu pai estava escrevendo. Por isso, guardou-o com carinho sob seu colchão.

Tempos depois, Luiz Márcio foi dado como desaparecido, após ter fugido da prisão. Essa era a versão oficial. Helena já quase nem conseguia trabalhar. Max, sempre apegado à mãe, adotou o hábito de sentar-se à escrivaninha do pai, onde cumpria suas tarefas escolares e se dedicava à leitura, principalmente do último livro que seu pai não conseguira publicar, intitulado “Contradições Lógicas do Direito de Posse” e subtitulado “Ensaio sobre as incoerências sociais nos tipos de propriedade”.

Max tornou-se jornalista de rara e grandiosa cultura. Casado, mudou-se para Brasília. Escrevia para um grande periódico nacional e uma revista semanal, das mais lidas. Em seus escritos geralmente satirizava, com refinado humor, o poder público, os políticos e pretensos artistas e intelectuais. Vivíamos o governo do último general, sempre pronto a oferecer, em cada aparição pública, um caminhão de motivações para os divertidos comentários e crônicas de Max. Dizia-se que o General Golbery era seu admirador e fiel leitor. Talvez, confiante nisso, não demonstrava temor quando ameaçado pelas forças da repressão.

Nossas conversas de fim de tarde, embora despretensiosas, alongavam-se sem hora para terminar. Bebíamos de sua cultura e saber. Fosse no Amarelinho, no Piano’s bar do Hotel Heron ou, para não variar, no Libanus. Tinha invejável capacidade e ligeireza para verbalizar seu raciocínio, com lógica e criatividade.

A par desses louváveis atributos, Max era um cidadão aberto, divertido, brincalhão e preocupado com a volta da normalidade democrática e com os menos favorecidos da sociedade. Falava da morte e provável tortura de seu pai sem demonstrar revolta, nem desejo de vingança.

Contou-nos sobre sua única atitude de revide aos algozes de seu pai. Ainda adolescente, visitara a residência de Dênis, seu colega de escola. Notara que a mãe do amigo, cidadã ainda muito bela e atraente, era teúda e manteúda (concubina) de um general, ligado à repressão. Max foi ao banheiro e – curioso ou bisbilhoteiro - notou no armário sobre o lavatório um pequeno estojo compartimentado em dias da semana onde se guardavam comprimidos programados para cada dia. Seis em cada compartimento. Todos muito semelhantes.

Supondo ser o estojo do general, a título de traquinagem, resolveu embaralhar os comprimidos e repor o estojo no lugar original.

Semana seguinte, Dênis faltara às aulas por três dias. Alegara problemas de saúde com o “namorado” de sua mãe. Acometido de súbita elevação da pressão arterial, crises alternadas de hipo e hiperglicemia e insuficiência renal, achava-se internado em hospital sem prazo para alta. O general sobrevivera, no final das contas.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 21/07/2018
Código do texto: T6396153
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.