A FOFOQUEIRA

A fofoca comia solta no edifício de três andares, numa das quadras residenciais 400 em Brasília. Tudo por conta de dona Lycia, esposa de um funcionário público federal. Morava no apartamento 204. Imediatamente acima do seu ficava o apartamento 304, quase nunca ocupado pelo morador oficial. Sempre cedido, com frequente revezamento de ocupantes.

Sem elevador, o acesso aos andares era feito por escada que obrigava as pessoas a circularem por um hall em cada andar. Dona Lycia mandou instalar visor (olho mágico) nas duas portas de seu apartamento. Não por segurança, mas, para registrar quem transitava no sobe-e-desce das escadas.

Prédios como esse foram construídos, no início de Brasília, a toque de caixa para atender à forte demanda de funcionários transferidos. Utilizou-se a tecnologia do concreto pré-moldado justaposto. Contudo, o resultado deixou a desejar: unidades residenciais mal acabadas e paupérrimas em isolamento acústico. Podiam-se ouvir bem vozes e ruídos de vizinhos, fossem do lado, de cima ou debaixo.

A maioria dos moradores não perdia a oportunidade de se mudar para prédios com elevador e de melhor acabamento. Dona Lycia, ao contrário, ficou profundamente irritada quando seu marido veio com essa conversa. Por nada, sairia daquele prédio. Construíra ali, durante anos, uma legião de amigas.

Pelas nove da manhã, com maridos no trabalho, louça do café lavada, roupa na máquina de lavar e almoço já encaminhado, tornara-se rotina o encontro das “comadres” no térreo. Juca, porteiro e zelador do prédio, disfarçadamente, ligava suas oiças em sintonia fina para acompanhar as novidades que cada uma trazia ao conhecimento da turma. Não nutria simpatia por dona Lycia. Mandona e fiscalizadora, bancava a síndica, juntando e entregando acintosamente ao porteiro pequenos lixos recolhidos nas escadarias e no piso térreo: palitos, papéis de bala, guimbas de cigarro e até cocô de cachorro. Mesmo tida como megera, era respeitada por sua liderança entre os condôminos. Ninguém se metia besta com ela. Chegou a estapear um carteiro que lhe negara deixar ver os destinatários e remetentes das correspondências destinadas ao prédio.

Era fofoca de todos os tipos para todos os gostos. As mais ouvidas com atenção eram as relacionadas com os moradores do 304, trazidas por dona Lycia. Inda mais se fossem novos no imóvel. Ela ficava atenta a qualquer caminhão de mudança que se encostasse no prédio. Logo perguntaria aos carregadores se era gente chegando ou saindo, quem era, de onde vinha, pra onde ia; se tinha filhos, cunhados, agregados etc. Se fosse novo morador para o 304, acompanhava “pari passu” e sem acanhamento as novidades, desde a grife da empresa de mudança, os móveis, malas, colchões etc.

Sua experiência era tal, que, pelo arrastar da mobília, sabia o quarto em que cada hóspede iria dormir. Pelas passadas, sabia o peso e o deslocamento exato dos ocupantes. Pelo barulho da urina caindo no vaso, identificava o sexo, se sofria de diabetes, tinha próstata crescida e outros detalhes. Isso sem contar que era craque em reconhecer o tipo de carinho trocado na cama pelo casal para, na manhã seguinte, quando olhasse para ela, pensar ou mesmo descaradamente dizer: “aí, hein!” Chegava a fazer anotações para efeito estatístico.

Vivíamos o tempo da ditadura militar quando o 304 foi ocupado por um casal mais maduro, pouco chegado a amizades e avesso a muita conversa. Sobre os dois, não se conseguia saber nada. Saíam cedo e voltavam na boca da noite. Ele, engravatado, atrás de grandes óculos ray-ban, debaixo de chapéu de aba longa, sempre carregando uma gorda pasta de couro ressecado com alça. Ela, também protegida por grandes óculos escuros, conduzia bolsa pouco maior que o costume. Respondiam secamente aos cumprimentos, sem gestos de simpatia. Que trabalho faziam, onde, para quem? A curiosidade ardia na cabeça das fofoqueiras. Cada uma “chutava” a ocupação do estranho cidadão. Tanta dúvida, tanto mistério, que, em tempos de chumbo não faltou quem sugerisse ser ele gente ou agente do SNI (Serviço Nacional de Informação).

Os dias passavam e dona Lycia, intrigada, já não se aguentava. Seus vizinhos do 304 pareciam flutuar ou andar de pantufas. O cidadão certamente urinava sentado, sem fazer barulho. Nenhum leve ruído de talheres, copos, televisão ou rádio. Na cama, nada! Quem sabe eram irmãos e dormiam em quartos separados? Ou, como se cochichava no grupo, faziam n’outro lugar; já tinham passado do prazo; cumpriam a lei do silêncio e outras tagarelices.

Bolaram um plano. Pediram à síndica – que também era da fofoca – para implementar um programa de dedetização nos apartamentos, justificado pelo recente aumento de baratas e outros insetos no prédio. Na ordem de serviço, indicava dona Lycia – logo quem? - para acompanhar o serviço.

Comunicação interna feita por escrito a todos os moradores falava do serviço e definia o sábado seguinte para sua execução, pedindo, portanto, que os moradores permanecessem em seus apartamentos para facilitar a aplicação do inseticida nos ralos e nos cantos dos cômodos.

Foi assim que dona Lycia descobriu serem os moradores do 304 professores de história demitidos da rede pública de ensino de São Paulo e perseguidos por suas posições políticas. Moravam de favor, sem móveis, e viviam da ajuda de amigos. Amealhavam algum trocado vendendo músicas, livros e outros artigos culturais. Pediram sigilo sobre sua situação. Por incrível que pareça, foram atendidos.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 27/07/2018
Código do texto: T6401750
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