A velha do trem

O transporte público ferroviário de São Paulo é um acervo metálico inesgotável de fluídos corporais, ambulantes, histórias e personagens tão ecléticos e complexos que poderiam protagonizar desde peças shakespearianas até pornochanchadas inspiradas nos contos de Nelson Rodrigues.

Num primeiro momento, somos todos estranhos. Podemos ser o próximo Hitler, o próximo Gandhi, ou o próximo funcionário da Contax. Depois, a rotina se encarrega de reunir no mesmo espaço aqueles que sabem qual é o vagão que para mais próximo da escada rolante.

Hoje, no entanto, uma senhora diferente entrou no vagão. Os cabelos brancos e as marcas do tempo estampadas no rosto denunciavam uma trajetória longa. Andava com dificuldade, devagar, segurando nas barras de ferro para se equilibrar. Vestia uma blusa de crochê azul que ela mesma deve ter tecido enquanto assistia à novela. Deu vontade de abraçar, chamar de vó e perguntar se não tinha alguma balinha de chá na bolsa. Mas só cedi o meu lugar a ela, que retribuiu com um sorriso tão terno quanto o da Palmirinha.

Ela se sentou, e abriu a bolsa. Nenhuma agulha, lã ou balinha saiu de lá de dentro. Mas, sim, um iPhone 8. Ela desbloqueou a tela com a digital e começou a responder as mensagens das amigas. Fiquei lendo de longe as conversas, tentando achar algo que me levasse de volta àquela paráfrase de Dona Benta suburbana. E encontrei. No background, estava a foto da neta brincando num parquinho. A senhorinha mandava foto do bolo que tinha feito no dia anterior para todas as amigas. “Olha o bolo que eu fiz ontem, é de cenoura” - comentava, orgulhosa. E as amigas respondiam: “Hmm, deve estar uma delícia”.

Sorri, imaginando quanto tempo ainda me restaria até eu começar a mandar foto de bolo para as minhas amigas. Eis que a velha deu um mortal do logotipo da Casa do Pão de Queijo e caiu de pernas abertas na conversa do “Victor Badoo’’, um contatinho sem camisa, 30 anos mais jovem. Aquela senhorinha varredora de calçada estava sentada no assento preferencial, na linha diamante da CPTM, pedindo foto de pênis às 7 horas da manhã de uma quinta-feira proletária. Um abuso!

“Mas que vovó safada!” - pensei, num ímpeto preconceituoso e precipitado de achar que gente velha não transa. Mas eu não estava totalmente enganada. Ela cobrava satisfação. Queria saber por que ele a deixou falando sozinha no dia anterior. Ele, enfático, disse que ficou intimidado com aquela abordagem agressiva e insistente de pedir foto dele pelado. Ela se defendeu, disse que só estava curiosa. Pediu perdão, e se justificou dizendo que não conseguia se conter, porque Victor Badoo era muito gostoso, e fazia tempo que ela não via uma CENOURA. Ela abusou da semântica para usar a palavra CENOURA com as amigas, para mostrar o bolo, e com o Victor, para ele mostrar a jeba.

Victor perguntou há quanto tempo ela não transava. Ela respondeu que já estava ficando louca, pois fazia pouco mais de 4 meses. “Que luxo!” – pensei. Seria eu uma espécie de monja tibetana? Uma usuária compulsiva de antibióticos para sinusite inibidores de libido? Uma celibatária por ocasião? Quantos anos eu tenho, afinal? Em que momento da vida eu escolhi ficar em casa assistindo a programas de culinária? Em que momento eu escolhi esperar? Em que momento os caras pararam de pedir foto minha para pedir emprego no mercado editorial?

Enquanto eu tentava decifrar o que deu errado na minha vida, a Dercy Gonçalves de Osasco não desistia de seu propósito. Victor, no entanto, apenas aguçava mais a curiosidade da sexagenária descrevendo a cueca que estava vestindo. Ela replicou o último comentário recebido de uma de suas amigas em um contexto completamente diferente, mas perfeitamente possível: “Hmm, deve estar uma delícia”.

O destino final ia se aproximando, e a velha do trem precisava desembarcar na próxima estação. Ela se aproximou das portas com cuidado, devagar, segurando nas barras de ferro para não perder o equilíbrio comprometido por uma vertigem, sintoma de uma sinusite crônica. Viu no reflexo do vidro a imagem de uma pessoa cansada, com os cabelos cobertos de tintura acobreada, um placebo para negar a existência dos primeiros fios brancos. Os óculos de coração blindavam a leitura de uma noite mal dormida. Por fim, desceu em frente à escada rolante, como de costume, abriu a mochila, pegou o celular já obsoleto e digitou na busca do navegador: ‘receita de bolo de cenoura’.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 02/08/2018
Código do texto: T6407868
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