A filha do Puma

Desde os primeiros dias de aula ela já se destacava pelo alto tom de voz, inquietação e postura de liderança. Percebi que a tentativa em ser popular demais e impor respeito e autoridade não eram bem aceitas pela classe, no entanto, não sei por que, os colegas suportavam sem muita reação a certos abusos, atitudes arrogantes e desafiadoras daquela baixinha parruda.

Pensei que Nayanne apenas teria encontrado terreno propício, naquela turma composta por maioria de meninas fofas e alguns meninos mansos que só tinham tamanho, para potencializar seu perfil de pequena aspirante à ditadora cruel e sarcástica. Se chegasse na classe e alguém estivesse sentado no lugar onde ela pretendia sentar-se naquele dia, simplesmente colocava a criatura pra correr dizendo que o lugar era dela, sem provocar briga, reclamação ou choro do indivíduo enxotado. Apontava o indicador bem no meio da cara de quem discordasse de suas opiniões. Denunciava pequenas travessuras dos outros por pura implicância. Mandava calar a boca. Lançava apelidos, debochava, dominava.

Certa vez, distribuí três frascos de cola para que a turma inteira compartilhasse na colagem de alguns recortes de jornais e revistas. A escassez de material às vezes era aproveitada como oportunidade para aprender a racionar, pensar no coletivo e exercitar a colaboração e paciência em grandes grupos. Mas a baixinha indomável nessa ocasião colocou a aula a perder. Ultrapassou os limites da tolerância quando aproveitou um momento de distração da colega e espremeu todo o conteúdo do frasco no assento da menina que, ao retornar para o seu lugar, sentou-se despreocupadamente na poça de cola branca. E o que seria a princípio uma peraltice contornável, tornou-se uma briga ferrenha não só pelo acúmulo de desaforos já aturados, mas principalmente por causa da mancha que ficaria na bermuda de marca novinha da outra garota. As duas se atracaram pra valer e a solução foi colocar Nayanne pra fora da sala desta vez.

Obviamente inconformada com a injustiça, nunca havia sido punida até então, saiu esbravejando: “Isso não vai ficar assim não, professora!”, “Vou mandar meu pai vir aqui na escola resolver esse bagulho com a senhora!”. Na opinião dela, tomei partido da outra menina e ela saiu perdendo o duelo ao ser expulsa de sala.

Quando achei que tudo se acalmara, fui avisada de que o pai de Nayanne era o famoso Puma. “Famoso quem?”. Um dos traficantes da região. Admito que cheguei a ficar bem preocupada. Agora a submissão da turma fazia sentido. Em segundos me imaginei sendo alvo de alguma emboscada na rua, de alguma represália cruel, de alguma forma de vingança. Medo, senti medo. Mal consegui terminar o dia no colégio, de tão desestabilizada psicologicamente que estava.

Logo que tocou o sinal, fui desesperada à direção explicar o acontecido e comunicar o risco que estaria correndo, bem como tomar logo as providências para o meu afastamento. Imaginar que o Puma poderia vir a minha procura me dava calafrios. Antes de ver o fim da minha carreira e vida no filme que se passava na minha mente, fiquei sabendo que o tal bandidão mantinha relacionamento amoroso com várias mulheres da comunidade, e que a mãe da menina era apenas uma delas, e que não era ele o pai biológico da garota, aliás tinha vários outros filhos, e que, inclusive, o sujeito estava foragido na ocasião. Ufa! Comecei a acreditar que minhas chances de ter de volta uma vida normal eram grandes, mas confesso que os dias de trabalho posteriores ao acontecido ainda foram tensos. Até que a notícia da morte de Puma num confronto contra a polícia foi anunciada algumas semanas depois.

Crônica do livro "50 Dias Letivos"

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Andréa Carvalho
Enviado por Andréa Carvalho em 09/08/2018
Reeditado em 12/08/2018
Código do texto: T6414418
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