É triste ter que esquecer...

Não foi por mera coincidência que achei aqueles velhos escritos no fundo da gaveta. Sabe quando a gente sente que era para acontecer? Pois assim mesmo que me encontro agora. Nem o torpor do café matinal, nem os mais brilhantes e realistas raios do sol já aparecendo nas primeiras horas da manhã me fizeram acordar desta terrível situação que me colocou. Sim, você mesmo quem me ‘deu’ este papel, eu tenho certeza que desempenhei de maneira totalmente verdadeira, agora, seu coração egoísta me fez ver que sou coadjuvante quando eu ilusoriamente achava que o papel principal era meu... Alguém me tirou isso, de repente.

Engraçado. Pensar nisso tudo me fez lembrar algumas situações pelas quais passei que acho serem ‘dicas’ que não consegui entender... Numa conversa distraída dia desses me perguntaram se eu realmente o conhecia. Estranhei, enfim, são tantos anos. Mas, parei um pouco e refleti sobre o questionamento. Um milhão de memórias passaram em minha cabeça, um milhão de gestos seus, de trejeitos que descobri com a convivência...mas sem nem perceber apenas sussurrei: não mais. Acho que era minha sanidade me dando indícios do que eu já sabia e não admitia.

Bom, continuei com meu propósito para este dia: livrar-me de você. Tirei todos os seus pertences da casa, procurei os mínimos detalhes de você ali para que os jogasse fora. Esqueci que o lugar onde mais habita é difícil de alcançar, assim, com as mãos, literalmente. Me olho no espelho e vejo meu rosto envelhecido, meus cabelos diferentes, os anos passaram e isso não consigo tirar de nós. Hoje sou o que me construí com você. Me entristece ainda mais porque não quero fazer parte do que você se tornou. É nesse momento que, com a casa praticamente vazia, deito no chão gelado e noto que os objetos se foram, mas há mais de você em mim do que eu gostaria e sei que um dia nem eu mesma saberei que isso aconteceu.

Me espalho por ali mesmo, orando para que eu sobreviva a mais uma eternidade de um dia cheio de vazios, seus vazios, ou meus? Essa dúvida que me cerca e que me mata. Não pode ser amor mais; isso era quando eu desejava que fosse. O adequado e o que quero não se encontram mais, a junção de tempo e desejo não somam mais a alegria vivida nos dias mais cegos que tive.

Confesso que, apesar de dizer que tirei tudo que consegui do apartamento, fiquei com as cartas. Aquelas achadas na gaveta, escondidas, clandestinas, proibidas. Por que não entende que elas nem deveriam existir? Cansei de lhe explicar e mais ainda de escutar suas desculpas totalmente sem sentido. É claro que existia esta pessoa, estava escrito, a presença dela se fez física no momento em que iniciou as letras no papel. Tocou-me, de uma maneira mais cruel do que eu gostaria, ver a sua sensibilidade em notá-la e descrevê-la. Se eu não estivesse tão enfurecida, conseguiria admitir que a amava profundamente.

Xícara vazia, a noite chegava e não conseguia me mover daquele lugar. Deu a hora de você aparecer e buscar as caixas que restavam. Mais uma vez sei que tentará me explicar que eram cartas de amor, mostrando sentimentos verdadeiros e para aquela que seria a única em sua vida. Como não cansa de me mostrar o que decidi não ver mais? Não entende que é a sua vida que tinha que ter continuidade, não queria que ficasse preso, mas você tinha que deixar este amor registrado!

Faça um favor a nós dois: rasgue e queime isso tudo. Não significa mais nada para mim, principalmente porque a loucura é meu estado mental normal. Não faça mais isso com você e nem comigo, sinto-me responsável por essa desgraça. Não escolhi passar por essa situação, mas escolho não aprisiona-lo neste esquecimento doente que é só meu!

Só deixe-me ir sem a lembrança escrita de nós, eu não nos reconhecerei mais. Não seria justo comigo, muito menos com você que ficou com o melhor de mim: meu amor mais puro, sadio. Esqueça de mim como estou sendo obrigada a fazer conosco, obrigada...

Sheila Liz
Enviado por Sheila Liz em 14/08/2018
Código do texto: T6418849
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