Eventos

Em 1998 aconteceu comigo uma série de eventos, digamos, interessantes. Digo “interessantes” porque não chegaram a ser trágicos – não culminaram em nada mais grave – nem assustadores, porque não acho que vi a morte de perto.

Pois bem, em uma tarde qualquer da primeira metade daquele ano, eu ia ao centro e, ao passar pela Praça das Cacimbas, vi um trem de cargas descarrilado. Na verdade, eram só uns dois ou três vagões. Não estavam virados, apenas pendidos para um lado, com as rodas fora dos trilhos. Quando passei, havia uns homens tentando recolocá-lo no lugar. Na volta, eles ainda estavam lá. Eu não tive confirmação do resultado do trabalho. Devem ter conseguido.

Um tempo depois, coisa de dias ou semanas, eu estava sentado na calçada cedo da tarde, só vivendo meu tédio de garoto tímido de 16 anos. O lugar onde eu estava era no meio do quarteirão e de lá eu vi quando passou um ônibus da falecida Empresa Lobo na rua Rui Barbosa em direção à Ailton Gomes. Assim que o ônibus cruzou a General Sampaio (a rua em cuja calçada eu estava sentado), eu ouvi um barulho forte de algo metálico quebrando. Fomos eu e outros meninos correndo ver o que tinha acontecido. Chegando lá, o eixo do ônibus tinha quebrado, os (poucos) passageiros saíam assustados. Depois de algum tempo (horas? não lembro), veio outro ônibus buscá-los para continuar a viagem e, pelo que me lembro, o ônibus quebrado só foi retirado no final da tarde.

Novamente, transcorreram-se dias. Na esquina da Rui Barbosa com a General Sampaio, havia a “bodega” dos pais de um amigo meu, onde nos reuníamos os moleques do trecho (era como chamávamos a rua ou o quarteirão onde morávamos) para ficar jogando conversa fora. No ponto defronte ao da bodega, na mesma esquina, havia uma oficina de sofás e o rapaz trabalhava até o começo da noite, umas sete horas. Muitas vezes, sentávamos nos batentes da oficina também. Lá, havia umas toras de madeira fincadas junto à calçada para proteger o ponto de eventuais batidas de quaisquer veículos e evitar que eles o invadissem.

Uma noite, eu estava sentado no batente da calçada, junto a uma tora dessas, quando eu vi um carro bater numa moto que cruzou o seu caminho. Vinham ambos no mesmo sentido, ela um pouco à frente e ao lado direito dele, quando atravessou de repente, para entrar à esquerda. O motorista, ao tentar, talvez por impulso, desviar da moto, veio em minha direção. Eu percebi, e com uma rapidez que até hoje me surpreende, levantei e entrei correndo na oficina. O carro bateu bem na tora na qual eu estava encostado e a quebrou. Fiquei assustado, saí de perto dali e parece que ninguém notou que eu estava lá porque não me perguntaram nada. Não lembro quantas pessoas estavam na moto. Acho que eram duas, que não se feriram com gravidade. No carro, parece que vinha um casal. A moça ficou assustada e foi só. Daí para a frente, também não lembro qual foi o desfecho.

Quarta-feira, vinte e nove de abril de mil novecentos e noventa e oito. O último dia de minha avó em casa. Neste dia, ela foi internada no Santo Inácio, de onde sairia oito dias depois, vencida pelos anos de consumo de cigarro “forte”. Isso foi à noite. Antes, pela manhã, eu fui para o colégio. Estudava no Segundo Grau, fazia o segundo ano. Eu sempre alternava o trajeto até a escola. Tinha dias em que ia pela rua do mercado, passando pela feira de troca e em outros ia pela Rui Barbosa. Nesse dia, fui por esta última. Ao chegar na Ailton Gomes, vi que vinham muitas bicicletas. Uma verdadeira nuvem de ciclistas indo para o trabalho. Adiantei-me para não ter que esperar todos passarem. Fui para certa altura da pista, de modo que a “nuvem” passasse por trás de mim. Eu também tinha a mania de me aproximar do meio da rua quando vinha um carro, para que quando ele passasse, eu estivesse mais perto do outro lado. Não sei se me fiz entender, mas sigamos. Avistei uma moto e fiz isso. Foi meu erro “fatal”. Quando a moto passou, eu percebi, tarde demais, que ela era só a primeira. Dei um passo à frente para atravessar e fiquei no caminho de outra, não vista por mim antes. O resultado é o que se pode presumir. A última imagem de que me lembro antes do impacto foi a escada que havia no canteiro da avenida. No instante seguinte, eu estava com a cabeça no chão e as pernas para cima, “capotando”. Logo pus-me de pé e, ainda zonzo, fiquei olhando para o motoqueiro, que gritava de dor sob a moto. Alguém chegou me falando para tirá-lo de baixo dela. Não o fiz. Fui para a calçada e quando minha visão começou a embaçar, uma mulher de uma loja me deu um copo de água. Não lembro se era com açúcar ou sem. Voltei para casa e fui para o Mário Malzoni cuidar dos ferimentos. Foram poucos, nem foi preciso fazer curativo. Só colocaram uma pomada amarelada. Eu ouvi dizer que o motoqueiro quebrou a perna. Nunca mais soube dele. Não lembro sua feição nem qual era a moto que ele pilotava. Nada.

Um tempo depois, lembrando-me disso, percebi uns detalhes que, acho eu, justificam o “interessante” do começo deste texto. Esses eventos aconteceram em uma escala crescente de proximidade até chegarem a mim e em uma escala decrescente (menos mal para mim) do ponto de vista dos veículos envolvidos.

O primeiro aconteceu longe de mim, na Praça das Cacimbas e eu não vi acontecer. Quando passei, já tinha acontecido. E foi um trem! O segundo foi com um ônibus e eu quase vi. Foi a alguns metros de onde eu estava e eu ouvi o barulho do eixo quebrando. O terceiro, eu presenciei desde o início da cadeia de eventos – que quase se tornou a última cadeia de eventos que eu presenciaria. Quebrou a tora grossa de madeira em que eu estava recostado. Teria me atingido no joelho. Ah, e meu quase carrasco foi um carro. Se não me engano, um Escort.

Finalmente, o quarto me alcançou. De tanto tentar, chegou. E foi um veículo menor do que os outros três. Só me legou uns arranhões. O pobre do motoqueiro é que se deu mal. Eu me pergunto agora se com ele teria acontecido algo parecido.

Pergunto-me também se a escala tivesse sido ao contrário. A escala de veículos, é a ela que me refiro. Certamente, eu não teria percebido esses eventos e muito menos os estaria agora colocando no papel. Como disse, não acho que vi a morte de perto, mas se tivesse ocorrido essa inversão na escala, eu ainda não a veria de perto, mas por dentro.