Manjar dos Deuses

Na antiga comunidade de Porteiras, hoje Santa Terezinha de Minas, distrito de Itatiaiuçu, as doze famílias, habitantes do local, muito católicas, costumavam rezar terços nas casas. Daí, surgiu a ideia de construírem uma capela. Após cinco anos de difíceis trabalhos, já puderam assistir à Santa Missa. A primeira imagem que a capela recebeu foi a de Santa Terezinha do Menino Jesus, que ficou sendo a Santa padroeira do lugar. Gente hospitaleira e religiosa, seus habitantes passaram a receber os peregrinos para a festa da Padroeira, dia primeiro de outubro, e outros eventos religiosos no arraial.

Na década de 1950, a economia vinha somente da agricultura e da pecuária. Vários fazendeiros e suas famílias trabalhavam a terra com esmero e muita dedicação. Cavalos, com grandes balaios, e carros de boi transportavam seus produtos a serem vendidos no arraial e de lá traziam outros itens necessários, como o arroz, o sal, o polvilho, a farinha de trigo, o querosene...

As crianças, chegadas à idade escolar, em simples camaradagem, reuniam-se em grupos e faziam o trajeto a pé até a escola no arraial. Na Fazenda Borges, os irmãos André, José e Paulo levantavam-se bem cedinho, passavam na fazenda do Juca Parreira, onde morava Heni, outro menino, da mesma idade que Paulo, talvez, com seus nove anos. A caminhada de seis quilômetros parecia assim mais fácil. Venciam o percurso, sem o perceber, entre prosa e algazarra. Chegavam à escola suados, cansados, mas, com ânimo, entusiasmo e determinação, pois aprender a ler, escrever e contar era a meta de todos eles. Raimunda, a professora, caprichava no atendimento a todas as crianças, de acordo com o grau de conhecimento de cada uma. Para isso, ela contava com um monitor, trabalho exercido voluntariamente por Heni.

Nessas idas ao arraial, além do estudo, as crianças ficavam a par de várias novidades. Passar em frente à venda de secos e molhados, do “Seu” Lau Parreira, fazia parte da caminhada. Curiosos, observavam que grande parte da mercadoria comercializável, a exemplo, o arroz, o feijão, o açúcar cristal e o milho, ficava exposta em sacos de sessenta quilos, abertos para ser vendida a granel, retirada com uma concha e colocada em sacos de papel. E o que mais lhes chamava a atenção era aquele açúcar cristal branquinho e brilhante. Que tentação para as quatro crianças moradoras nas fazendas de Porteiras! No meio rural, só desfrutavam da rapadura, que era usada para fazer doces, quitandas e para adoçar o café.

Certa vez, Heni comentou com o pai que sempre sentia muita vontade de apreciar o açúcar, toda vez que passava em frente à venda! Seu pai, Juversino, tirou do bolso várias moedinhas dizendo:

— Vá lá provar o açúcar!

Elas todas foram investidas, ao sair da escola, na compra do produto cobiçado. Cheio de si, colocou-as em cima do balcão da venda do “Seu” Lau Parreira.

— Quero tudo, tudo, em açúcar! — foi logo esclarecendo.

— Tá aqui seu pedido: dois quilos bem pesados!

Ele, com seus três coleguinhas, fizeram a festa! E, no caminho, foram saboreando pela primeira vez aquele verdadeiro manjar dos deuses, numa euforia sem par! E não só comiam, mas passavam as mãos meladas de açúcar no rosto já molhado pelo suor, nos cabelos e nas roupas, uns dos outros. Só faltou que deitassem e rolassem na grama, cheia de folhas secas, e parecessem com o macaco Bicho-folha da folclórica história infantil.

Quase no final da jornada, numa parada obrigatória, entraram no córrego de água muito pura. Com o sol abrasador de verão, o corpo ardendo, a boca seca, aquele momento foi todo especial. A sede, saciada com sofreguidão, aproveitaram para tirarem o açúcar do corpo lambuzado. Chegaram a casa na hora do almoço, porém, a fome não apareceu. O efeito colateral devido à ingestão de tanto açúcar, eles sentiram na madrugada seguinte, pois foram acometidos por forte diarreia. Ao amanhecer, não aconteceu aquele tradicional encontro, para juntos fazerem a caminhada à escola. Na sala de aula, pela primeira vez, quatro carteiras ficaram vazias, enquanto “cada um em seu canto padecia o seu tanto”.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 25/08/2018
Código do texto: T6429478
Classificação de conteúdo: seguro