INGRATIDÃO

O Aeroporto de Caravelas/BA, no extremo sul baiano, antes de ser arquivado e abandonado pelo poder público, teve seus dias de profícua função no transporte aéreo costeiro na Bahia. Construído pelos americanos durante a segunda guerra, em tempos de paz, sem perder as funções militares, passou a servir mais como aeroporto comercial de passageiros e cargas.

Por ali rolaram vários episódios, dignos de arquivo e memória. Um deles ocorreu em meados dos anos sessenta. Naquele aeródromo, ainda pousavam e decolavam pequenas aeronaves do tipo Bandeirantes, que se bastavam com menos de vinte passageiros. Sem toalete a bordo, os percursos voados obrigavam-se à pouca demora. Muitas das escalas serviam apenas para satisfazer as necessidades fisiológicas dos passageiros.

O Aeroporto de Caravelas, já nos estertores de sua falência, prestava-se, pelo menos, a essa função. Era ponto de “xixi”.

Já que era assim, o administrador do aeroporto, um militar, cioso de suas obrigações, esmerava-se em manter os toaletes sempre bem asseados.

O inesperado pedido de demissão da faxineira pegou o administrador de surpresa. Tirou o dia seguinte para garimpar alguém que aceitasse o emprego. Buscou contar com quem conhecesse pessoas e suas disponibilidades.

Foi aí que se lembrou de Edésio Souza Santos, de Alcobaça. Era figura comum no aeroporto, sempre capitaneando comitivas de locais para receber políticos e gente importante. Sem titubear, partiu para Alcobaça.

Na companhia desse ilustre alcobacense (mais tarde seria eleito prefeito municipal), foram conversando com um, com outro, ouvindo indicações, tomando um café aqui outro acolá. Até chegar à casa de Benedito Bacural, para falar com sua esposa.

Não careceu de muita prosa. Dona Maria aceitou o emprego e começou logo no dia seguinte. Sob recomendação e conferência do chefe, mantinha os sanitários do aeroporto brilhando e exalando inconfundível cheiro de eucalipto.

Passados quinze dias, aterrissou por lá um avião Bandeirantes da aviação regional, fazendo escala de vôo. Dele desceu um narigudo e ligeirinho passageiro fortemente agarrado a uma valise do tipo “007”. Direto para o sanitário. Demorou bem mais que um simples “xixi” e reembarcou. Largou no toalete uma inominável porcaria. Vaso sanitário, piso e até paredes, tudo chapiscado por uma fétida argamassa castanha.

Dona Maria nem teve coragem de entrar no reservado. Entreabriu a porta e deu uma olhada de nariz fechado. Nunca imaginara encarar tal situação.

Baldes e mais baldes d’água foram jogados como preliminar. Assuntando mais atentamente, ao lado do vaso ficara largada uma maleta 007, também respingada de titica.

O administrador militar, nos tempos em que a dúvida predominava sobre a certeza, preferiu não tocar na valise. Poderia ser obra de terrorista! Suspendeu o serviço de limpeza da titica. A aeronave em pleno ar, o rádio com defeito, não permitiam boa qualidade de contato.

Contudo, as tentativas de comunicação - via rádio e telégrafo - com outras Bases repetiam-se aos minutos. Aguardavam-se apreensivamente orientações de Brasília, Salvador ou Rio.

Embora o aeroporto, de praxe, fosse protegido dia e noite por guarnição armada, naquela vesperal a recomendação era cautela, sob suspeita de bomba no banheiro.

Dias sem orientação, o administrador assumiu a responsabilidade de remover a valise. Usou uma longa vara de bambu para “pescá-la”. Atirou-a propositadamente dentro de um bueiro do pátio. Nada ocorrendo, passou à curiosidade de conhecer seu conteúdo. Feita a necessária higiene externa com detergente e álcool, arrombaram-se as presilhas chaveadas.

Por toque de honestidade, fez o serviço sob vistas e testemunho dos funcionários. Surpresa! Suspiros, “nossas” e queixos caídos. Era uma valise repleta de jóias e pequenas barras de ouro. Por que ainda não reclamaram a perda de desse tesouro? Perguntavam todos.

Sem mais exposição, a maleta foi trancada e lacrada com fitas adesivas assinadas por todos os presentes. Em seguida, guardada no cofre forte da guarnição, esperando que fosse reclamada pelo seu legítimo dono.

Toda sexta-feira o administrador abria o cofre e conferia, com testemunhas, a integridade dos lacres.

Quando ninguém nem mais falava dessa maleta e o administrador bolava um meio de remetê-la ao Ministério da Aeronáutica, apareceu o narigudo e ligeirinho borrador de banheiro. Era passageiro de vôo em escala. Com forte sotaque árabe, procurou pela maleta. Dona Maria ouviu e chegou junto. Sorrisos e palma da mão coçando e querendo estender-se. O cidadão sisudo identificou-se, através de passaporte marroquino, como Ali Mohamed. Demandado a justificar-se como proprietário do objeto, conseguiu descrever em detalhes todo seu rico conteúdo. Mesmo assim, ainda conferiu peça por peça. Fechou rapidinho a maleta, agarrou-se a ela, virou as costas e reembarcou ligeirinho com sempre. Só faltou “dar língua” aos presentes.

Nem um “obrigado”, muito menos o que dona Maria tanto goderava.

Arrependimento foi o sentimento que permeou aquela gente por um bom tempo.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 25/08/2018
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