SOMBRAS ATRAENTES

Aproveitando a ocasião em que começam a movimentação política, as campanhas eleitorais e a troca de desaforos através das redes sociais (ou antissociais?), rebusquei na memória um inusitado episódio experimentado em Belo Horizonte/MG, no ano de 1962.

Eu fazia propaganda eleitoral a bordo de um carro alugado com dois alto-falantes do tipo corneta afixados no teto em posições opostas. No banco traseiro, duas grandes baterias automotivas, sempre carregadas, amplificador e um microfone. Entrando e saindo de ruas, praças e avenidas, lá íamos eu e seu Luiz, o motorista. A exploração de espaços urbanos nunca dantes percorridos por vezes nos punha a procurar o caminho de volta ou um horizonte mais familiar. Nada de gravação. Era inteiramente no gogó. Do café-da-manhã ao pôr do sol. Água, refrigerante e pastilhas mentoladas a lubrificar as cordas vocais. Para complicar, o aquecimento do amplificador acrescia em alguns graus a temperatura interna do veículo. Pior: as janelas não podiam ser plenamente abertas, pois causavam terrível microfonia nos autofalantes.

Minha remuneração era o grande apreço que guardava – e ainda guardo com saudades - por um dos mais fiéis e importantes amigos que tive na vida: dr. Celso de Rezende Passos, filho do dr. Gabriel Passos, deputado, ministro, honrado chefe e respeitável líder. Dr. Celso me tratava e me queria como irmão e eu, com isso engrandecido, correspondia orgulhosamente a esse tratamento, aplicando todo esforço no trabalho de sua campanha a deputado federal.

Vez por outra, deslocávamos para cidades do interior, não muito afastadas de Belo Horizonte. Nessas oportunidades, fazíamos o trabalho prévio de anunciar a presença de dr. Celso à cidade, o comício na praça central, além de distribuir propaganda impressa à população. Soltávamos fogos de estampido, além de promovermos intensa buzinação para abrir o caminho ao carro que conduzia o candidato. A ideia era despertar e animar a população para o evento. Sobre essa campanha, sintetizemos dizendo, mais uma vez orgulhosamente, que dr. Celso Passos foi eleito deputado federal por Minas Gerais, sendo o quinto mais votado. Infelizmente, anos mais tarde, teria seu mandato cassado pela ditadura militar, como ocorrera a muita gente boa no parlamento.

Voltemos ao carro de som, pelo qual anunciava com entusiasmo as qualidades de meu amigo e candidato.

Final de tarde, em Belo Horizonte/MG, já quase escuro, paramos num misto de padaria, lanchonete e bar de agradável aparência.

Dispensei seu Luiz e o carro. Dali, tomaria um táxi para casa. Não ficava muito distante da residência de meu irmão que me hospedava durante a estada naquela capital. Dia seguinte, pela manhã, seu Luiz, como costume, estaria a me aguardar na porta de casa. Retomaríamos a tarefa, com baterias recarregadas. O dia começava com breve reunião matinal do comitê, na Praça Sete,

comandada por dr. Celso e dr. Navarro, coordenador da campanha. Nessa ocasião, prestávamos conta do serviço relatando as atividades da véspera.

O ambiente que eu escolhera para merendar e encerrar o dia brilhava com seus luminosos balcões envidraçados; estendia-se à calçada, larga e repleta de mesas e cadeiras. Intrigava-me o interior do bar praticamente vazio, em contraposição à calçada, com todas as mesas ocupadas e gente em pé, entremeando os sentados. Tal distribuição dos fregueses contrariava a fria brisa das alterosas soprada ao anoitecer naquele início de inverno.

Atravessei por entre aquela gente da calçada. Todos de copo na mão, papo animado e olhar atento para o alto do prédio defronte. Parei e, curiosamente, fiz o mesmo. Era uma larga vidraça no terceiro andar, coberta com cortina semitransparente que exibia silhueta de uma mulher que se deslocava, trocava de roupa e dançava, aparentemente ao som de uma vitrola. Lembrava um teatro de sombras, do gênero sex appeal. Entendi!

Cansado, acomodei-me no ambiente interno. Entre os garçons - quase todos apressados para atender a turma de espectadores - notei um mais maduro, meio lento, careca e de sotaque tipicamente do nordeste mineiro. Atendeu-me com a cortesia e simpatia de um antigo conhecido. Enquanto aguardava o chocolate quente mais um pastel de queijo com palmito que lhe pedira, tocamos um papo sobre origens. Apresentou-se como natural de Teófilo Otoni e estar em B.H. há dois anos. Aprendera a arte de ser garçom no restaurante do Automóvel Clube. Não demorou a identificarmos amigos comuns daquela cidade, Pedro Rian, o libanês seu Felipe, Bacharel, dr. Darcy, prof. Patrício, Bogodô e outros.

O show da vidraça continuava animado. Agora, acrescido de outra mulher que chegara como se fora uma colega de moradia. Também despia-se e dançava. Preparavam e bebiam drinques. Certos gestos e posições causavam assobios, expressões diversas e pedidos de mais um chope.

Aproveitamos a intimidade construída entre nós naquele momento e indaguei como ficavam os fregueses sabendo daquele show.

Depois de olhar para os lados, falou, em tom de cochicho, próximo a meu ouvido:

- Cá pra nós. Não conte pra ninguém, não! Isso tudo é pura farsa. As cidadãs que ficam se despindo e rebolando naquele apartamento são garotas de programa contratadas para fazer o espetáculo pelo dono deste bar, um carioca cheio de truques. Coisa montada para atrair frequentadores. Repete-se diariamente a esta hora e a freguesia só faz aumentar.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 25/08/2018
Código do texto: T6429960
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