Até mais, tia Leonor.

Uma das tias do meu marido, a tia Leonor, sempre foi especial. Sorridente, muito prestativa, mas sei que também muito bravinha, embora eu jamais tivesse presenciado alguma cena cruelmente bizarra.

Era doutora em ajudar o próximo. Trabalhou como enfermeira no Hospital das Clínicas meio século atrás. Gostava de falar que, quando um paciente sofredor por excesso de catarro e o médico não dava solução, ela ia para casa, matava uma galinha, tirava-lhe a banha e a levava escondido para o hospital e aplicava a gordura no peito do paciente. Aí sim ele melhorava, deixando o doutor orgulhoso pela sua vitória. Falava cantado como paulistana da primeira metade do século passado. Meu filho e eu a imitávamos constantemente, principalmente quando ela contava memórias da sua antiga casa, na rua Natingui.

E como gostava de falar dos tempos da Natingui, na casa onde havia bem na frente um jardim com um pé de café e umas tantas plantas medicinais, que os vizinhos adoravam pedir alguma muda!

Jamais vira uma casa com tamanha fartura! Foi ali, na casa da rua Natingui, que comi a mandioca cozida mais macia, mais doce da minha vida há quase quarenta anos! E eu olhava admirada para o seu fogão verde, fogão Wallig visoramic, com abas. Não sei como, mas um dia criei coragem: “quando a senhora não quiser mais esse fogão, eu compro da sra.”

Vários anos se passaram até que ela resolveu comprar um fogão chicoso. E me disse: “o seu fogão já está aqui”. Fiquei numa empolgação radiante... e, hoje, depois de uma longa espera, ele está na minha cozinha, chamando a atenção de algumas amigas, que não poupam adjetivos carinhosos, dizendo: “a minha mãe tinha um igual quando eu era pequena”...

Sempre pronta para ajudar, todos os dias o meu marido almoçava na sua casa quando jovem, iniciante no primeiro emprego, e ainda nem podia pagar por um prato feito. Mas ela estava lá, garantindo que ele poderia – e foi – almoçar na casa dela inúmeras vezes.

Uma pessoa que dava extremo valor à família. Como filha de imigrantes italianos compreendia perfeitamente que a união seria um elemento importantíssimo capaz de manter a sobrevivência daquelas pessoas irremediavelmente pobres e da história de rompimento de laços com os antepassados. Era preciso ultrapassar o Atlântico e “fazer a América”. E muito se lastimou comigo nos últimos tempos sobre a falta de união e cooperação nas novas gerações.

Chegou a pirar na batatinha quando uma sobrinha neta se casou e não a convidou. Centenas de vezes buzinou essa indignação no meu ouvido e eu a explicar que hoje a juventude é outra, tem outros propósitos e não tem mais a família como instituição primeira de equilíbrio. Ela não compreendeu nada e sofreu por isso.

Foi nossa madrinha de casamento. Aliás, só pessoas importantes compareceram à cerimônia da igreja da rua Frei Caneca. Pessoas ilustres, como a minha avó, o meu tio Béio, o meu tio Dante e esposa, que me ensinou o básico de política, de nacionalismo, de humanismo e a “ler nas entrelinhas”, a minha madrinha, tia Norma e marido, o mais verdadeiro amigo do meu pai, o Matos e esposa, o queridíssimo tio Basílio e esposa, minha prima Sônia e o marido Xico... enfim, pessoas que marcaram nossas vidas pela sabedoria, presença, sorriso e disposição para a partilha.

A tia Leonor era uma senhorinha encantada pelo padre Marcelo. Falava dele diuturnamente com tamanho entusiasmo que chegava a nos provocar algumas tiradas audaciosas.

E sempre a perguntar se eu tinha visto o Padre Marcelo. “Não, tia, já li algumas coisas, mas não vi porque raramente eu ligo a televisão”.

Meu filho, só prá sacanear, na última conversa pelo telefone:

“tia, qual padre a sra. gosta” – interrogação.

“Padre Marcelo”.

“Ah, tá. Pensei que fosse o padre Fábio”. Rsrsrs.

A cada vez que ela falava do Padre Marcelo, pelo telefone, eu fazia sinal para o meu filho, mostrando “1”. Passava um pouquinho, outro sinal: “2” e assim ia até o 7 ou 8.

Mas hoje a tia Leonor se foi.

Não vou chorar. Vou continuar falando da sra., tia, com o mesmo respeito, as mesmas brincadeiras, a mesma audácia, falando cantado, sem malícia, não entendendo nada, absolutamente nada, da modernidade, dos novos desafios e relacionamentos. Vamos continuar falando das suas bizarrices, como achar que o Brasil ia melhorar com a saída da Dilma. Essa, tia, foi de doer o saco, como costuma dizer o meu filho.

Eu sei que a sra. não entendia lhufas de política, acreditava na globo, era uma marcelete de primeira linha, sem questionar nada... mas ninguém é perfeito mesmo...

Vai com Deus, tia. Conte para os nossos queridos que já se foram como estão as coisas aqui.

Aliás, não conta muito não. Eles ficarão desolados demais com essa realidade e poderão nem acreditar na senhora.

Beijos e queijos.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 10/09/2018
Código do texto: T6444877
Classificação de conteúdo: seguro