INEXORABILIDADE

INEXORABILIDADE

Êta palavrinha incômoda!

Incomoda alguns de nós, que sentem dificuldade em pronunciá-la.

Incomoda outros de nós, que não sabem, ao certo, como escrevê-la.

Incomoda, sobretudo, quanto ao seu sentido fundamental, que nos lembra, sempre, que nossa existência é finita, que temos data de validade, mesmo que um tanto indefinida.

Inexorável - adjetivo de dois gêneros

Que não cede ou se abala diante de súplicas e rogos; inflexível, implacável.

Cujo rigor, severidade, não pode ser amenizado.

No primeiro livro da bíblia (gênesis), vemos que as primeiras gerações de homens, que habitaram nosso planeta (seriam mesmo os primeiros?) viviam em torno de mil anos. Após o dilúvio, o tempo de vida decresceu, situando-se em torno de duzentos e poucos anos, e, daí pra frente a coisa foi murchando, até chegar na Idade Média, em que se vivia algo em torno de trinta ou quarenta anos. Mas o vivente abonado poderia chegar aos sessenta, talvez.

Outros livros sagrados históricos, têm enredos e personagens parecidos, com contagem de tempo pouco variável. Deduzimos, pois, que ou seus autores, de algum modo, conseguiram se comunicar e imaginar algo semelhante, ou a realidade era pertinente ao que relataram.

Poucos de nós atentaram a algo bem característico. Quando vivíamos muitos séculos, o que pensávamos e fazíamos, estava, quase completamente, relacionado à nossa essência, ao culto às regras fundamentais da vida, com ênfase na relação com a divindade ou as forças que a representavam no orbe, como a natureza (flora, fauna, clima, eventos naturais), e apesar de já existirem problemas sociais como crimes, tirania, opressão, fome e mais uma série de outras incomodações sérias, pouco enfoque se dava a essas anormalidades, porque o que importava era viver de modo exemplar e confiar na justiça superior. Só se tomava o cuidado de evitar os ambientes mais conturbados, apoiar e auxiliar os necessitados, e viver com simplicidade.

Conforme o tempo avançou, tornamo-nos mais complexos, assim como os movimentos de nossa civilização. Nossas virtudes se apequenaram, quase ao ponto de desaparecer, e em paralelo, nosso ego cresceu, gerou deformidades, vícios, apegos, que desaguaram em grande e vasta desestruturação social e familiar. Tornamo-nos individualistas, classistas, regionalistas, nacionalistas e mais um monte de istas, a perder de vista. A autenticidade original foi sumindo, trocada por artificialismo na comida, vestimenta, relações sociais e familiares, artes, interação, estudo e todo tipo de procedimento em um grupamento qualquer.

Não contentes com a perda do sentimento coletivo original, decidimos incrementar toda a divisão possível, e criamos rótulos, com regras próprias, para nos separar, de acordo com os enfoques que “julgamos” corretos. Assim, temos nominações religiosas, esportivas, militares, étnicas, populacionais, raciais, genéricas, políticas, ideológicas, alimentares, além das menos problemáticas, como profissionais, técnicas e outras. Tão ocupados estivemos, ao longo dos últimos milênios, séculos e décadas, em comparar-nos e aos nossos próximos, em relação aos ditames afins e distintos, em criticar opositores, em defender interesses ou preferências, em arrebanhar simpatizantes, em louvar nossos próprios atos e passos, desdenhando os alheios, apontando erros e acertos, conforme os entendamos inerentes à realidade que enxergamos, que não concebemos outra atitude, postura ou horizonte, que não esteja alinhado com aquilo que nos parece o único caminho viável a ser seguido.

Nunca existiu um único caminho, e nenhum dos caminhos seguidos, até hoje, em todos os segmentos ou atividades civilizatórias, foi efetivo, muito profícuo, justo, bem aceito, longevo e exemplar. Muitos deles deixaram exemplos, sementes, mas também muita dor, sofrimento e morte. Assim como fazem religiosos, que quando querem usar a bíblia ou outro livro sagrado, para exemplificar ou justificar seus atos e intenções, procuram um trecho que os apoie, e que pode ser bizarro (todo livro sagrado tem trechos assim) ou ter sentido alterado, fora de seu contexto original, todos fazemos, em nosso dia a dia, o mesmo, apelando à história, aos fatos de uma mídia qualquer, e extraindo informações esparsas, que ou foram objeto de revisionismo ou estão fora de contexto, ou mostram um ponto de vista específico, que, geralmente, retrata apenas parcialmente, o acontecimento focado.

Perdemos o contato mental com o Todo, com o orbe, com o telurismo e o humanismo predominante. Sabemos mas não sentimos, e, inexoravelmente, morremos antes da morte.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 14/09/2018
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