Cabelo de pipoca

Quando eu era criança, costumava dizer que tinha cabelo de pipoca. Não sei porque diabos eu dizia aquilo, mas na minha cabeça fazia muito sentido: os cachos pipocavam aqui e acolá, formando ligeiras ondas de cabelo escuro e grosso. Na época, minha mãe o deixava crescer quase o bastante para eu conseguir enrolá-lo no indicador. Não que eu fizesse isso – isso é coisa de menina, meu pai diria. Só às vezes, quando eu estava bem distraído e incomodado com as tais pipoquinhas.

Naquela época, minha família morava a favor numa casinha no centro da cidade. A casa era toda torta e feia – do tipo que chegava a ser assustadora. Havia um imponente abacateiro na parte da frente do quintal, as ramagens fartas despontando do outro lado do muro, onde eu e outros meninos do bairro nos reuníamos de vez em quando. Nos fundos, havia uma jabuticabeira, uma laranjeira, um limoeiro e uma espécie de pequeno bananal, que quase funcionava como o muro dos fundos, já que não tinha. Do outro lado do bananal, um senhor estranhíssimo havia construído uma das casas mais bonitas do bairro: era de um rosa claro, com portões brancos, e tinha um interfone muito tentador – se você foi criança no final dos anos noventa e no início dos anos dois mil, sabe muito bem que havia uma magia irresistível nos interfones, que o faziam tocá-lo para depois sair correndo, aos berros, com o coração na mão.

Apesar de a nossa casa ter sido, provavelmente, a mais feia de toda a rua, eu era muito feliz lá. E acho que meus irmãos também. Tínhamos muitos amigos, um quintal enorme, árvores para subir, lugares para explorar, interfones para tocar... Sim, eu era feliz naquela casinha. Mesmo com as histórias sinistras que me contavam sobre ela. A mais famosa, contada por um dos gêmeos, neto do Vô João, ou Seu Joãozinho Eletricista (que, na época, soava pra mim como Seu Joãozinho Alexista, não sei por quê), dizia que antes de nos mudarmos para lá, a casa fora lar de uma mulher e duas filhas. Infelizmente a casa desabara sobre as três e elas morreram no local. Simples assim. Pelo menos é o que me lembro. De qualquer forma, desde então, o fantasma da mulher perambulava por lá. E tinha até um nome: Maria Pretinha.

Ora, foram muitas noites sem dormir com medo da tal Maria Pretinha! E de repente, todos pareciam saber sobre a maldita: meus pais, minha irmã, o Vô João... e todos me faziam medo com histórias sobre ela. Por isso – e por causa do palhaço, o maldito palhaço – eu sempre acordava chamando pelo meu pai no meio da noite, apenas para que ele acendesse a luz, com desculpas de que estava com sede ou com vontade de ir ao banheiro. E quando ele não vinha, meu Deus, eu chorava silenciosamente debaixo daquela coberta pesada e áspera que usávamos antigamente.

Como se não bastassem as histórias, havia noites em que nosso cachorro, um pinscher bem vira-lata chamado Pingo, não dava sossego. Nessas noites, todos permanecíamos acordados, reunidos com minha mãe no quarto de casal, enquanto meu pai dava uma volta ao redor da casa, para ver o que estava deixando o Pingo tão agitado. Na minha mente, só vinha a imagem de uma velha maltrapilha e negra escondida entre as bananeiras do fundo do quintal, atiçando o cachorro com pedrinhas. Seria a Maria Pretinha? Nunca descobrimos.

Acho que o medo e a adrenalina que sentia nessa época tiveram um papel importantíssimo no que me tornei hoje. Tudo bem que eu era o mais medroso dos meus amigos, o mais molenga e o mais “politicamente correto” (na medida do possível), mas eu tive um número satisfatório de peraltices. Não tanto quanto meu irmão mais novo, que batia, de longe, o recorde de peraltices – principalmente quando se juntava com um dos gêmeos, neto do Vô João. Aqueles dois sabiam fazer arte: desde quebrar janelas de vizinhos com pedras até roubar cavalos que pastavam, com desculpa de que não tinha dono, porque não viram ninguém. Quase sempre, tudo terminava machucados superficiais (ou não), um sermão e meu irmão abrindo o berreiro – porque isso era outra coisa que ele sabia fazer muito bem: chorar.

Nessas ocasiões, eu estaria brincando que tinha super poderes, na rua ou na varanda do Vô João, com o outro gêmeo. Éramos muito imaginativos, e tudo parecia ser exatamente igual em nossas cabeças, como se estivéssemos mesmo vivendo todas aquelas aventuras. E eu sinto muita falta disso: de como minha mente era fértil, do quanto minha imaginação podia ser palpável... Hoje em dia, quando me lembro de momentos assim, pareço estar dentro de um filme de super-heróis. Não vejo duas crianças correndo e gritando pela rua, fazendo movimentos aleatórios com os braços. Vejo grandes explosões, inimigos e dois super-heróis – ou super-heroínas, dependendo do dia e da brincadeira – tentando salvar o mundo.

De vez em quando, eu percebia minha mãe parada diante do portãozinho azul enferrujado de nossa casa, nos observando brincar. Não sei o que passava pela cabeça dela. Talvez ela já tivesse uma ideia do que ia acontecer, muitos anos depois, porque ela balançava a cabeça, mas não de um jeito repreensivo. Então, eu acenava pra ela e continuava a brincadeira, porque estava no meio de uma batalha.

Essas coisas aconteciam durante as férias escolares e, às vezes, ficávamos na rua até anoitecer. Apenas quando meus pais permitiam. Em noites assim, a rua ficava cheia de crianças: eu e meus irmãos, os gêmeos e seus irmãos mais velhos; os primos deles; e as outras crianças da rua e da “rua de cima”, que era como chamávamos... a rua de cima. Jogávamos queimada, rouba-bandeira, pique-esconde, pulávamos corda – era uma festa! Depois, tomávamos banho, sentindo aquela dorzinha nos arranhões, e implorávamos aos nossos pais para dormirmos uns na casa dos outros.

Nos fins de semana, contudo, a coisa era diferente. Era de praxe um Fusca branco, com volante de madeira, estacionar de frente à nossa casa, e nos apanhar para passar o fim de semana inteiro com esse amigo que, até hoje, é como um irmão. Meu irmão e eu fazíamos a nossa mochila e íamos felizes, espremidos onde nos coubesse. Bença pai, bença mãe, e só domingo à tarde! Se era um alívio para nossos pais, eu não sei, mas para nós era uma das melhores coisas da vida. Por quê? Para que você entenda, terei de retornar muito na nossa linha do tempo, então, é melhor deixar essa parte da história pra outra hora...

Lucas V O França
Enviado por Lucas V O França em 20/09/2018
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