A menina que escrevia no ônibus

Toda manhã era a mesma coisa. Acordava cedo e se preparava para mais um dia comum. Com ou sem café, ia para a esquina e até parecia que as histórias vinham ao seu encontro, lhe abria a porta e segurava pela mão enquanto ela adentrava o transporte coletivo.

Tem lugar pra ter mais história do que um ônibus urbano? Se ele estiver cheio então… É gente falando da vida alheia, mulher dando notícias de parente enfermo, homem se aproveitando do balanço pra se encostar em alguém. Adolescente conversando besteira e achando que é engraçado. Senhor ou senhora se equilibrando pra não cair, e olhe que uma queda ia ser cena de cinema. Mal tem espaço pra se mexer, uma queda ali mais pareceria uma avalanche no Monte Everest ou aquela brincadeira que derruba as peças do dominó. Há coisas que lhe causavam um tantinho de estresse.

E se há algo estressante de se ver logo cedo são pessoas dizendo que querem mudar o mundo, enquanto idosos são transportados em pé, curtindo os “catabis” como dizia a mãe da menina. Tão jovem, mas já entendia de injustiça e aprendia como não deveria ser.

Outro dia a ira foi lhe tomando toda, não é que ali na sua frente havia uma mãe bem acomodada e ao lado o filhinho dela ocupava o outro assento?! O que a incomodava não era a presença deles, mas o fato estapafúrdio da mulher nem se manifestar diante de tanta gente pendurada numa espécie de trapézio que são os corremãos dos ônibus.

Sabe o que é sentir um fogo lhe consumir devagar? Era assim que a menina se sentia. Queria falar, a voz travava, garganta seca. Na certa ela iria comprar uma briga que não era sua, mas de todo cidadão que pensa no próximo. Ali, ela ficou a se questionar, como poderia uma mãe ensinar tamanha covardia a sua criança? Ainda resmungou algumas palavras, “põe no colo”. A cena em nada mudou. E sua voz se confundia com um sussurro. Ninguém ouvia.

Naquele dia nenhuma vontade de escrever apareceu, nenhuma ideiazinha sequer. Nada. Entrara em guerra consigo mesma. O que estaria ao seu alcance? Como poderia estar mudando situações como aquelas sem se indispor nem se perturbar? A saída não era calar, talvez escrever. Escrever pra quem sabe alguém ler e como ela pensar, agir.

Ionara Lima
Enviado por Ionara Lima em 21/09/2018
Código do texto: T6455191
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