A DOR NOSSA DE CADA VIDA
Madrugada de quinta-feira, 09/03/2006. O relógio marca 05:13h.
Acordado há cerca de 40 minutos pelas dores de parto sentidas pela
companheira, ele compartilha as aflições daquele momento
sobejamente impregnado de muita emoção.
Devidamente trajados e com as malas já no carro, aguardam a confirmação dos sinais no sentido da finalização daquele episódio.
Nesse ínterim, sobrevêm a idéia de musicalizar o ambiente, talvez
como manifestação instintiva ditada pela intranqüilidade de suas almas.
A música, então, assume o papel da trilha sonora perfeita, executada
através de um velho aparelho movido pela tecnologia mais primitiva
que já se soube. Não obstante a isso, permitiu-se ouvir toda a
beleza de uma canção do Guilherme Arantes, cujo refrão tornou-se
um mantra:
“...curto é o caminho dos covardes; triste é o riso dos ignorantes.
todos precisam de um veneno para encher a sua taça de desejo.
todos precisam de um desejo para encher a sua taça de veneno...”
O tempo tornou-se de fato relativo a um nível incalculável.
O passado se reproduz instantaneamente na tela do imaginário,
projetando um futuro não muito definido, afinal, encerrado naquele
presente, existia um cabedal de variáveis que atuariam decisivamente
na qualidade daquele futuro.
O vínculo com o agora, apesar do show pirotécnico das
conjecturas várias, se mantém.
Os compromissos com o trabalho não perrmitem ao homem esquecer a forte dependência que tem com a lucidez continuamente exigida, devendo permanecer o tempo todo antenado ao ritmo impresso pela realidade, afinal, a cabeça que tanto sonha exige que os pés do mesmo corpo estejam bem assentados no universo concreto das coisas.
Outro indício forte de que a realidade urge providências se mostra
pela leitura das expressões faciais de dor e incômodo reveladas
pela companheira que, deitada no sofá, aguarda quase que
insanamente, pelo evoluir desse quadro, quando as horas
encontrariam, no tempo, o momento exato identificado pelas
reações preditas pelo médico.
A música continua ritmando aqueles momentos de infinda espera,
em suave compasso, contrapondo-se à ansiedade das expectativas.
Curioso como é angustiante esses espaços de tempo que antecedem a vida e como é real a similaridade com as reações diante da morte,
ressalvando, naturalmente, a qualidade dos sentimentos que se
processam diferentemente nessas duas situações. Certamente o
inesperado rompendo a inércia do sentir requisita uma ansiedade
previsível.
O sol adentra pela janela, com seus raios incipientes, mas fortes
o bastante para fazer com que se perceba que a angústia experimentada avança e se prolonga ao longo do tempo.
O silêncio dos instantes é rompido por gemidos de dor que se acentuam na medida em que “o estrangeiro” se embrutece através de
seus métodos de se fazer perceber num mundo novo que
nada lhe oferece além dos sonhos dos pais em lhe assegurar a
melhor qualidade possível na sua estada.
Por fim, reconhece-se a coincidência do quadro percebido
com as descrições do médico. Instintivamente a natureza sinaliza que a viagem tem seu fim muito próximo.
Parte-se, então, para o hospital, em cujo centro cirúrgico
assiste-se a mais um acontecimento que homenageia a vida,
rechaçando toda e qualquer manifestação de pessimismo
levantada quase sempre que se reflete sobre a desumanização
dos relacionamentos.
O choro é um paradoxo contundente e se revela no personagem
mais insolente da grande festa de recepção ao novo ser.
Indefeso, inocente, desprogramado...
Algumas das variáveis já são conhecidas nesse momento. As demais assumirão corpo e forma segundo nossas participações e doações individuais e conjugadas. Que sejam as melhores para que o futuro possa referendar esse dia como uma sinalização positiva, dentre outras tantas, no sentido de confirmar nossas crenças na validade da
existência humana.