SURPRESA DE AMIGOS

Antônio Coletto

Voltava das férias e assumiu o seu trabalho de médico no Hospital de Clínicas. Devidamente paramentado com seu traje todo branco, inclusive os sapatos e Jaleco como um sobretudo, atrás de sua mesa, recebeu a enfermeira que lhe entregou a ficha do paciente que passara pela triagem. O paciente entrou em seguida, acompanhado do irmão mais velho, e a entrevista teve início.

O profissional olhou para ele, bem nos seus olhos, esboçou um sorriso e começou a fazer-lhe as perguntas de costume e, entre uma e outra questão abordada, outras fluíam e passaram a conversar como amigos vez que suas idades se assemelhavam. Em meio ao diálogo e ao fluxo de informações colhidas pelo profissional, a anamminese foi sendo construída. Não a concluíra ainda, quando, esboçando um sorriso, o médico perguntou se ele, o paciente não o estava reconhecendo, e, também ao irmão, sentado ao seu lado. Não, responderam automaticamente o paciente e o irmão, indagando: devíamos?

O médico prestou-lhes algumas informações que foram bem absorvidas e o suficiente para a identificação. Cumprimentam-se efusivamente. O médico e o paciente haviam sido colegas e amigos de infância, moraram na mesma rua, vizinhos de casa durante anos. Nos folguedos diários após os deveres escolares, brincavam juntos na maior alegria, de onde fluíam traquinagens de toda espécie.

Só o tempo em sua inexorável certeza e a divergência de caminhos os levaram para campos diversos. Perceberam, o médico e o paciente, que os campos onde militavam eram, realmente, muito diferentes. Conduto, nada do que descobriram, impediu o regozijo, a alegria do inesperado encontro, e em situação impactante.

O médico, por não ser de sua especialidade e dada à gravidade do quadro, com muita tristeza e sem poder expressá-la, determinou que internassem o amigo na área própria, reservada aos acometidos pela moléstia que o afetava, no Campus da Universidade, sob cuidados de especialistas e, todo dia, passava por lá ou telefonava para saber da recessão ou progressão da moléstia, conversava, às vezes, com o amigo e o sentia cada dia mais abalado, a perder suas forças. Assistiu, como profissional, a impotência diante da moléstia incurável e, como amigo, sentiu a dor de vê-lo no leito a definhar, perder suas forças a conduzir sua lenta partida do meio familiar e social.

O médico, convocado, participou de um Congresso Médico em São Paulo. Não partiu sem antes comunicar ao amigo. No retorno, uma semana depois, num desses telefonemas que despertam as pessoas para a vida, recebeu a notícia de que o amigo de infância havia partido para o plano superior, o de cima, onde permanecem vivos os justos. Pensou nisso, fez várias reflexões, perguntou para si mesmo: a vida que se escolhe ao empregar o livre arbítrio vale a pena? Tudo já está escrito? e, ao nascer, trazemos conosco todo o nosso futuro e seu desfecho? Temos capacidade de, ao empregar o livre arbítrio, mudar alguma coisa? Muitos pensamentos lhe vieram à mente acompanhados da saudade e do imenso pesar da perda, após o reencontro. Talvez sim. As respostas serão encontradas ao longo da vida e a melhor forma de encontrá-las é a observação, assentiu silenciosamente. Contudo, nem tudo lhe vem escrito à vista de todos; essa inscrição é enigmática, às vezes emblemática, e somente será manifestada na intercorrência do caminho escolhido para ser seguido. Talvez nem se venha conhecer as conseqüências que podem advir da conduta escolhida, ou, da libertinagem praticada, mesmo por “inocentes” ou imaturos jovens.

Do outro lado da linha quem estava e lhe participou a triste notícia foi a mãe do amigo, lamentando, em prantos.

Era um domingo, dia dos pais. O amigo não era pai, o médico também não, experiência de que na desfrutaram. Ao médico não foi reservado o direito de conduzir o amigo à sua última morada, tornou-se, entretanto, com isso, um dos suportes morais da família, o ombro amigo a serem depositadas lágrimas pela dor do passamento.

A debilidade que levou o amigo, ninguém sabia explicar como a adquiriu, apenas que fora uma realidade que atingiu a mocidade e a ceifou do meio familiar e social. Tantas outras famílias são tolhidas pelo infortúnio, vez que o HIV não perdoa, murmurou o médico em palestra organizada pela mãe atingida pelo infortúnio, para jovens de sua área de atuação como professora.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 29/09/2018
Código do texto: T6463138
Classificação de conteúdo: seguro