O Pescador

O PESCADOR

Domingo de agosto. Já estavam há dois dias no mar. Enquanto ele cuidava do leme, os dois filhos e o sobrinho pescavam e tratavam os peixes. Tinham conseguido uns 50 quilos de peixe, entre miudos e médios. Guaiúbas, cangulos, piraúnas, pequenos pirás, ariocós, alguns cações, penas, biquaras e até umas ciobinhas se acumulavam no pequeno porão da jangada e o gelo sob o sol causticante, quase acabando.

Ele olhou para o horizonte, e mal distinguiu a linha de terra. Hora de voltar para casa, pensou. Avisou aos rapazes e enquanto um puxava a poita, o segundo recolocava o mastro e o terceiro continuava a estripar os peixes recém pescados ainda sobre o estreito convés.

Logo que obteve algum movimento, virou a proa para terra. O vento, entrando pelo través de bombordo, fazia o cordame do estai cantar, garantindo uma carreira boa. Resolveu dar uma fundeada na Pedra do Velho, um pouco mais em terra, e tentar a sorte para ver se pegava algo maior para garantir o rancho da semana. Como pensou, fez. O sol já estava alto no céu quando ele conseguiu localizar os pontos em terra que lhe davam a marcação da pedra. Foi chegando com a escota folgada, de mansinho seguindo o caminho, e quando fechou o acento e o amarrador, mandou arriarem a poita. Desceram a linhada para sassangar e pronto: estavam em cima do pesqueiro. Logo o primeiro peixe que saiu foi um beijú-pirá de uns bons 6 quilos que foi logo limpo e colocado no gelo, enquanto ele puxava o segundo: um canela de ferro de 12 quilos. Tentou mais um pouco, mas embora pegasse mais um bocado de peixes, era tudo médio e miúdo . Pesou os prós e os contras e resolveu seguir viagem, pois ainda tinha quase 4 horas para chegar no fundeadouro e com o gelo acabando, corria o risco de perder tudo. Logo estavam correndo para casa. Os rapazes se alternavam na molhação da vela e o mais novo com a tampa do porão aberta, arrumava os peixes já gelados para espremer o ultimo bocado de gelo nos últimos peixes ainda por limpar.

O vento que já tinha amanhecido puxando, depois da viração começou a puxar mais ainda. Ele resolveu folgar um pouco a escota que estava caçada, dando uma inclinação boa, mesmo com a jangada carregada com os peixes mais o peso deles. O mar, um tanto encapelado pelo vento de agosto nunca é de confiança nessas paragens, pois uma refrega súbita pode pegar de repente e virar uma jangada. Se ela estiver com a tampa do porão fechada, nenhum problema, a gente faz força, desvira e continua a viagem, mas se estiver aberta, depois do porão cheio dágua, só Deus para desvirar. E a tampa estava aberta, pois o sobrinho estava em pé dentro do porão até a altura dos joelhos, limpando e arrumando os peixes. Apreensivo, folgou mais um pouco a escota. O mar encarneirado de vez em quando passava por sobre o convés, apenas uns 50 cm acima da linha dágua.

Aconteceu na mesma hora em que o sobrinho estava saindo do porão. Todo mundo atento à saida dele e quando a rajada veio forte, não deu tempo para nada. Bruscamente a vela inflou demais e nem o peso dos rapazes que se jogaram na borda oposta conseguiu equilibrar. A tampa do porão foi-se levada pela mesma rajada, todo mundo n'água. O sobrinho boiou mais atrás pois teve que mergulhar para não ficar preso pelas tralhas, mas o filho mais velho não apareceu. Provavelmente uma pancada na cabeça, na hora que o mastro quebrou.

No meio do caos, eles conseguiram se juntar ao redor da jangada virada, o mastro quebrado e perdido fora das vistas. O peixe se fora, mas pescador não se preocupa com peixe nessa hora. Também não acredita que não consegue desvirar a jangada, e assim começaram a tentar. Depois de algum tempo e muito esforço desistiram. Ficaram os três exaustos, dentro dágua, pois quando um tentava subir na jangada virada ela começava a afundar, e era o único ponto de apoio que restara. Pedaços de isopor, remos, caixas, qualquer coisa que pudesse servir para boiar o mar tinha levado. Ficou apenas a jangada virada.

Homem prático, corajoso, não ia morrer de medo por coisa pouca, afinal ainda restava a jangada. Orientou os outros, menos experientes: Vamos ficar segurando na jangada e nadando devagar para terra. A gente demora mas chega, e sempre pode passar um barco de pesca que vai dar socorro. E assim fizeram, mas era domingo e ninguém sai para pescar num dia desses com o vento desse jeito. Foi-se o resto do dia, chegou a noite e eles agarrados na jangada em silencio. Ninguém recriminava ninguém, pois sabem que as coisas do mar são assim mesmo. Depois do calor do sol que quase ninguém sentiu por causa do vento, veio o frio que dava para suportar, pois a água não é tão fria nessas latitudes, mas não perdiam a esperança. Um podia parar de nadar para descansar um pouco, mas os outros continuavam. Ao longe, dava para ver entre uma onda e outra as luzes da Via Costeira e assim se orientar para continuar nadando.

Quando o horizonte começou a ficar cor de rosa, ele rezou por chuva. Já estavam há mais de 18 horas na água, sem beber, mas Deus não mandou ainda. Mandou mais sol. Um sol que rachava os beiços, secava o sal no cabelo e não dava alívio, além de mostrar a linha da costa longe ainda. Os olhos cheios de lágrimas causadas pela irritação do sal, e ainda assim, eles unidos, nadando lenta mas corajosamente para terra. Pelo que ele podia ver, já haviam passado Búzios e deviam estar chegando na altura de Pirangí, mas notou também que uma leve correnteza estava levando-os para terra, pois embora ainda distante, estava bem mais próxima que no entardecer da véspera. Os olhos se encompridaram por todo o horizonte para ver se enxergavam uma vela, um mastro, mas nada...

Tornou a anoitecer, e com a noite e o cansaço, chegou o velho temor que o pescador tem no mar:o do tubarão. Mas não podiam esmorecer, pois a única coisa que podiam fazer era manter a coragem. Ele recomendou que fizessem o mínimo de barulho com os pés na água. Lá pelas 9 horas, veio a chuva. Chuva abençoada, que se não lhes lavou os corpos mergulhados na água salgada, pelo menos deu algum alívio às gargantas secas e aos olhos enramelados, mas aumentou o frio. Conversaram muito pouco, apenas para comentar e agradecer a Deus pela chuva. Vigiavam-se permanentemente uns aos outros, uma vigilancia um tanto frouxa causada pelo esgotamento do sol e do sal, e quando um queria cochilar, era cutucado com força pelos outros.

E veio a manhã do terceiro dia e com ela a falta do sobrinho. Era o menor, o mais fraco, todos cuidavam dele, mas em algum momento ele parou de nadar e escorregou para as profundezas sem que ninguém notasse.

Foi-se o segundo, pensou ele. Pensou mas não falou, para não levar o desespero ao último filho. Ao invés disso, encorajou-o e mostrou-lhe que a linha da costa estava tão perto que já dava para distinguir ainda um pouco longe as casas da Ponta Negra, onde estavam passando, mas já com alguns detalhes. Mais um dia de sofrimento. No final do dia, já escuro, passaram em frente à Barra de Natal, tão perto que dava para ver a iluminação do Forte dos Reis Magos. Vontade de nadar para terra, mas a voz da experiencia interior lhe dizia que se o fizesse, morreria antes de chegar na praia, pois estava muito cansado. Lá pelas nove da noite, passaram em frente a Redinha. Não sabia se por capricho do vento ou porque estavam perto mesmo, ouviam os gritos das mulheres e a música que vinha de uma festa na praia. O filho falou: Pai, vou tentar chegar a terra para pedir socorro, e ele disse não. Mais tarde o rapaz disse: Olha pai, estou dando pé. E ele olhou, e efetivamente viu que o filho estava firme, como que segurando a borda da jangada. Ele pensou e falou: Acha que dá ? Você está cansado! Mas o rapaz insistiu e disse que em umas duas horas estaria de volta com socorro. E se foi. Durante um longo tempo ficaram mantendo contato pela voz. Ele gritava e o rapaz respondia, o rapaz gritava e ele respondia. Depois que a distancia não permitiu mais, ele ficou só. E passou Genipabú, Santa Rita, Jacumã. Chuva de novo e ele conseguiu beber algumas gotas e tirar um pouco do sal dos olhos. Meio dormindo, enregelado de frio, quando o dia amanheceu viu o barco quase em cima dele. Fracamente acenou com um dos braços e foi avistado.

Levaram-no para Pitangui, onde os pescadores e suas mulheres cuidaram dele por dois dias até que pudesse ser conduzido ao hospital, onde esperava encontrar o filho.A jangada, foi rebocada pelo mesmo barco para a praia e ficou lá esperando pelo dono.

Duas semanas depois, sem nenhuma notícia do seu último filho, conformou-se e voltou para sua praia.

Voltou para o mar, e a cada vez que sai, reza uma oração pelos filhos. Toda vez que vai a Natal, procura pelos hospitais, pois acredita até hoje que seu filho mais novo não morreu. Se até conversa com ele de noite, antes de dormir.

Natal, 15 de agosto de 2003.

Omar Morhy Neto.