Ficção e realidade

Engraçado como está a cabeça das pessoas. Elas estão lendo e aceitando coisas erradas como certas. Recentemente, bloqueei no Facebook gente que me criticou porque eu critiquei um personagem de uma graphic novel. Eu falei que odiava o personagem porque ele sequestrou uma pessoa e a forçou a ser escrava sexual. chegando ao ponto de tatuá-la como se fosse gado.Mas a autora da história quer que a gente goste de alguém assim. E esse personagem é adorado por milhões. Ele sequestrou essa pessoa para se vingar do protagonista. E vejam só outra: essas pessoas que bloqueei disseram que o protagonista não ama a pessoa que namora. Ele apenas quer usá-la como "tapa-buraco", pois sente saudades de seu amor do passado.Vejam só, essas pessoas acham normal que alguém seja usado assim por outras como objeto sexual, esquecendo (ainda que seja ficção) que usar alguém como tapa-buraco e objeto sexual é um ato abominável. Mesmo que se trate de ficção, é errado. Como você se sentiria se soubesse que uma pessoa que está com você não lhe ama, só lhe vê como tapa-buraco? Você não tem sentimentos, não é um ser humano? Nenhum ser humano é um passatempo.

Usar alguém como escravo sexual ou tapa-buraco é desumano. Todo ser humano deve ser tratado com dignidade. Ver pessoas falando de condutas erradas como se fosse normal fazer alguém de escravo sexual, estuprar ou brincar com os seus sentimentos deve nos alertar. O que lemos realmente tem o poder de nos influenciar. Uma prova disso é o fato de que pessoas que se viciam em pornografia não têm vida sexual saudável. Muitas pessoas que foram viciadas em pornografia já confessaram que isso afetou suas vidas sexuais e a forma como se relacionavam com seus pares. Não se está dizendo que alguém que leia um livro que romantize estupro fará isso na vida real, naturalmente, mas precisamos problematizar, chamar a atenção para o fato de que não é correto que leiamos passivamente e de forma acrítica obras que coloquem como normais coisas como pedofilia, estupro, abuso sexual e atos violentos. E se alguém acha normal que se estupre e fique com alguém só para preencher um espaço, devemos desconfiar dessa pessoa. Ela está anestesiada, insensível.

Dizer que as pessoas entendem que o que se está lendo é ficção parece razoável à primeira vista, mas também é bom que lembremos de coisas que ocorreram na vida real e provam que obras de ficção podem nos influenciar. Quem já assistiu a Tubarão ou leu o livro de Peter Benchley talvez não saiba que o próprio autor do livro que deu origem ao filme de Steven Spielberg depois se arrependeu de ter retratado o animal como uma máquina assassina louca por carne humana e passou a fazer campanhas para educar as pessoas que os tubarões nada têm a ver com a forma como o filme os retratou. Ele confessou que escreveu o livro porque era fascinado por tubarões e ficou alarmado ao ver que tanta gente estava querendo aprender a matar tubarões. O autor de Lolita, Nabokov, chegou a protestar contra as adaptações cinematográficas do seu famoso romance, reclamando que estavam adultizando a personagem-título e romantizando a pedofilia. Como se vê, os escritores nem sempre controlam a interpretação que se dá ao que eles criam. Então, temos de ter cuidado com o que escrevemos. Digo isto porque podemos ter intenção de escrever uma coisa e as pessoas até entenderem outra.

Estupro, condutas erradas, violências e atos abusivos podem ser retratados na ficção, mas devem ser colocados de forma a que se provoque discussão, despertando os que leem ou assistem para o fato de que certas coisas não podem ser aceitas. Um bom exemplo de filme que mostra violência doméstica, relacionamentos abusivos e estupro é O amor e a fúria, filme neozelandês de 1998, em que vemos a rotina de uma família pobre e de origem maori em que o pai é violento e alcóolatra, a mãe apanha do marido e a filha adolescente é estuprada por um conhecido da família. Tudo isso leva a um fim trágico e serve para que discutamos problemas sociais.

O escritor ou diretor de filmes precisa tomar muito cuidado com a maneira como retrata o que iremos ler ou assistir. Queiramos ou não, isso afeta nossa forma de ver o mundo.