Inicio de vôo, final de caso

BSB

Nove da noite. Hora mágica quando as coisas começam a acontecer. Estou em Brasília, a cidade que também é mágica, de partida se bem que não definitiva. As luzes do saguão do aeroporto acesas dão uma impressão feérica a tudo.

Ela veio me deixar aqui e já se foi.

Dirijo-me à sala AIS mais arrastando que carregando essa sacola já gasta de tantos pisos de aeroportos. Confiro os mapas meteorológicos para a minha rota, faço meu plano de vôo e enrolo o máximo que posso pois na saída da sala está meu avião ainda distante, e o pátio escuro que me espera. Escuro como ficou minha vida depois da conversa que tivemos hoje e como talvez vá ficar para sempre. As janelas da torre de controle acenam em vão suas luzes piscantes enquanto recordo: Pobre louco! Pensas que poderias construir uma vida a partir de um amor de infância ? Ilusão! Lembro das noites que varávamos em busca de uma identidade perdida para sempre e de um amor que buscávamos racionalmente mas que já não existia porque amor não é racional. Um ano que valeu a pena pois enquanto fazíamos a busca, nos acompanhávamos. Dias em que chegava tarde e começava a buscá-la pelos `barzinhos`, de um em um até chegar em casa completamente embriagado sem encontrá-la, e dias em que ela simplesmente telefonava e a noite se iluminava pois hoje eu sabia onde encontrá-la com certeza e a volta para casa embriagado novamente, mas desta vez de felicidade. Dias em que a felicidade era completa simplesmente por estarmos juntos e dias negros em que não conseguiamos sequer nos falar.

Agora acabou. Chegamos à conclusão de que não é amor, é sofrimento pois nesta vida agitada de aviação nunca sei onde vou pernoitar hoje nem amanhã. Elas... Ela e a Aviação. Escolha difícil, quase impossível pois meu amor é intenso da mesma forma.

Enquanto peso isto vou caminhando pela escuridão do pátio em direção ao amor maior e mais fiel que um aviador pode ter: o avião. Sua sombra me espera paciente na noite como outros iguais esperaram em outras noites também. Já está ultrapassado, mas suas asas rijas me conduziram com segurança por milhares de quilômetros e sei que ainda há muitos pela frente. Abro e enquanto espero os amortecedores da porta cederem, empurro a sacola para dentro. Subo lentamente os degraus, puxo-a e fecho-a atrás de mim com o sentimento de que estou encerrando uma etapa da minha vida. Já sentado na cabine inicio mecanicamente todos os procedimentos que fazem do avião a minha casa. Master ligado, todos os interruptores em `off` menos a chave geral dos rádios que trato de ligar.

- Torre Brasília Papa Papa Echo Papa Charlie pronto para acionar.

- Autorizado acionar, chame para o táxi.

Manetes de hélice todas à frente, potência a 1/4, combustível cortados, master ligado inicio o procedimento de `starter` do motor direito, e o gemido familar da turbina subindo de rotação me parece semelhante à sua voz pedindo que fique e o do starter com a minha contestando `não posso`. Preciso ficar atento à temperatura por isso fecho os olhos momentâneamente para voltar a ver o frio painel com nitidez. Mesmo procedimento para a turbina esquerda mas desta vez ela me diz que não volte se não for para ficar enquanto o outro repete `não posso`.

- Echo Papa Charlie, instruções, táxi, decolagem com destino a Cuiabá.

- Pronto para copiar ?

As instruções da subida são transmitidas e vou anotando e repetindo de forma quase maquinal, a medida que vou iniciando o táxi para a pista dez. Porquê as coisas não podem ser mais simples ? Porque a gente tem sempre que querer modificar o ser com o qual convivemos ? Se o conhecemos daquela forma e assim o aceitamos e ficamos felizes, porque mudar as coisas ? Melhor perder tudo que ter uma parte ?

Tem sido assim sempre, e o táxi lento parece não querer deixar eu me afastar dela nem da cidade onde ela vive.

- Na posição dois pronto!

- Livre para a três e decolagem!

Entro na pista, alinho meu grande e agora único amor, reconfiro a tabela de torque, potência até o limite, freios soltos e inicio a corrida entre as duas fileiras de luzes paralelas que me levam para a frente e para o alto.

Omar Morhy Neto

Recordações-Natal, 17/01/2004.