Sobre sertania e traumas*

Minha mãe saiu do sertão, mas o sertão não saiu de mim.

Esta semana, comecei em um novo trabalho que, por sinal, é completamente diferente do anterior: da música ambiente que se ouve na sala à finalidade social.

Mas, para meu sossego, fiquei numa sala com cinco marmanjos: isso significa não ter de responder a perguntas complicadas, nem aceitar falsos elogios, coisas que rondam o mundo feminino.

Não que os elogios femininos sejam sempre falsos, mas muitos são apenas pra puxar conversa e, na maioria das vezes, são direcionados ao que sequer temos orgulho, como, por exemplo, as sandálias que calçamos.

Como se não tivesse encontrado, da cabeça aos pés, nada mais interessante pra elogiar em mim, uma mulher – das que fazem elogios pra puxar conversa – disse que eram lindas as minhas sandálias, e atacou com a pergunta complicada: “onde você comprou?”.

(Eu nem sabia: ainda desfruto da mordomia de não comprar calçados pra mim, já que isso desgosto muito de fazer, e minha mãe sempre me dá de presente, que é pra eu não andar descalça pelo meio da rua, o que eu gostaria: de sentir a terra nos pés por onde eu passasse.)

O segundo elogio que recebi na primeira semana de trabalho foi de um homem, feito ao meu texto, sem pergunta complicada no final e, pra completar, sem eu ter de agradecer, o que eu não sei fazer: aceitar elogios. Eu apenas ouvi: “olha aqui, a Cristina se garante no texto”.

Mas meus problemas com elogios vão além de serem falsos ou verdadeiros, de virem de homens ou mulheres, velhos conhecidos, ou não. Outro dia, encontrei uma amiga que há algumas sextas-feiras não encontrava; e, pelo tempo de desencontro, ela me veio dizer que eu estava radiante de bonita. Eu sorri e, imediatamente, mudei de assunto: “ei, aquele negócio deu certo...”.

Doce de pessoa que é, ela repetiu o elogio pensando eu não ter entendido. Eu, mais uma vez, sorri, e pra não frustrar a espera dela por um agradecimento, tentei explicar: “é porque eu cortei o cabelo”.

Minutos mais tarde, esbarrei com ela novamente. Ao comentar qualquer coisa, ela insistiu impressionada no quão radiante eu estava. Mais outra vez, sorri incrementando a primeira explicação: “é que eu cortei o cabelo e dei uma emagrecida, deve ser isso”.

No terceiro reencontro, ela, como se estivesse querendo me fazer enfrentar o trauma, disse eu estar incrivelmente linda de uma coisa que ela não sabia explicar. Então foi quando eu expliquei: “é que eu cortei o cabelo, ele cresceu e está combinando mais com meu rosto, que, por sinal, está mais afilado porque emagreci... e também, o preto da minha roupa deve estar realçando, e os brincos, embelezando...”. Ela me interrompeu gargalhando do meu desespero em não saber aceitar elogios. Eu desexpliquei tudo: “desculpa, desculpa, mas é que eu não sei, não consigo aceitar elogios...”.

Eu tenho essa mania: fugir, explicar, desfazer elogios que me fazem. Na maioria das vezes, dou logo uma de convencida pra não ter de agradecer, pra não ter de engolir um reconhecimento alheio.

E, além de não saber aceitar elogios, eu não sei dar beijo em rosto de ninguém, com raras exceções momentâneas, claro. Mas, geralmente, beijo ombros, testas, pescoços, mãos, costas, tudo para desviar do rosto, o que já é um feito: isso não fez muito parte da minha vida, assim como aceitar elogios: sertanejos só labutam e só se beijam no amor.

*texto originalmente publicado no site Crônica do Dia - www.patio.com.br/cronica

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 29/10/2005
Código do texto: T64908