PONDERAÇÕES DE UM MALA SEM ALÇA

Recordei-me estes dias de um evento, do qual participei, quase por acaso, e onde estavam presentes os insignes escritores Ariano Suassuna e João Ubaldo, há vários anos. Era uma chatice sem tamanho, a agenda estabelecida, porque enfatizava iniciativa de políticos locais, em favor da instalação de bibliotecas em comunidades carentes (coisa boa), precedida, porém, de intermináveis discursos sem conteúdo que prestasse (coisa péssima).

O troço só mudou de ares quando Suassuna pegou o microfone, a pedido de um grupo indeterminado, e logo de cara afirmou que tinha de dizer algo motivador, porque tinha muita gente cochilando, inclusive Ubaldo. Este deu uma risadinha desmaiada, e concordou. Ariano continuou, dizendo que discurso é o que todos querem fazer, mas ninguém quer ouvir, a não ser que a motivação seja muito forte. Dizia que todos queriam, sempre, que discursasse, mas preferia contar causos e fazer rir, para não notarem o quanto ele era um mala.

Todos riram, e ele ria junto, de balançar o ventre. Ubaldo quase babou, de tanta risada.

Acrescentou que aprendera o termo em São Paulo, pouco antes, quando perguntou ao garçom de um restaurante se havia feijão mulatinho. Viu o gajo se afastar, dizendo baixinho, ao colega: “Outro mala!” Mais risos da plateia e Ubaldo falando que já tinha sido chamado assim. Essa lembrança me veio à mente, ao ler um comentário semelhante a meu respeito.

Sei que sou um mala, mesmo tentando ser gentil, afável, positivo e cordato. O caso é que sou daqueles que, ao tentar resolver algo, piora tudo. Detalhista, gosto de pontificar o que é dito aos borbotões, por quem não tem a menor preocupação com a pertinência de um relato. Ninguém gosta de esclarecimentos, correções, preciosismo ou complementações, que soam apenas como chatice, pedantismo, sem importar o conteúdo. E daí, sou chato, mala!

Não adianta tentar explicar, depois que o leite derramou, porque ninguém quer saber se é assim ou assado. A atitude, a afirmação, o acontecimento, a situação, já se firmaram na memória de quem participou ou assistiu, e o julgamento está definido, para o bem e o mal.

Certa vez, estando fora do Brasil, ao sair de um aeroporto, pedi ao garagista umas dicas sobre o caminho mais adequado ao meu destino. Conversávamos em espanhol, e como ele foi muito atencioso, perguntei-lhe se aceitaria uma gorjeta, que em espanhol se diz “propina”. Três senhores que me acompanhavam, de dentro do carro assistiam à conversa, e assim que entrei no veículo, derramaram em meus ouvidos seus temores de que eu fosse flagrado em algo ilegal, no qual eles também poderiam ser implicados. Só fui entender a confusão, quando disseram que eu me arriscava muito em oferecer propina a um estranho em outro país.

Em outra ocasião, estando num restaurante italiano legítimo, daqueles cuja comida dá água na boca de qualquer vivente, o garçom nos ofereceu (estávamos em seis, numa mesa) um aperitivo, composto de caponata (berinjela temperada), pão italiano e azeite. Como falava em italiano, e meus acompanhantes não compreendiam o idioma, pedi-lhe que trocasse o azeite por manteiga, porque sabia que a manteiga deles era excelente. Ocorre que, para quem não sabe, manteiga, em italiano, se diz “burro”. O garçom insistia que o azeite era bom, e eu que queria manteiga, e lhe dizia, repetidamente: “Burro, burro!” Foi ele se afastar, vencido por meu argumento, que todos na mesa passaram a me criticar: “Puxa, cara! O homem é atencioso e você fica xingando, assim, sem mais nem menos?”

Quando essas coisas acontecem, você pode explicar, discorrer sobre o tema, que nunca vai convencer as pessoas que a coisa é como está dizendo. Paira sempre grande dúvida no ar. E depois fica sabendo que, na sua ausência, passou a ser um mala, sem alça.

Pesquisando, descobri que, de forma mais ou menos semelhante, importantes nomes da história já foram considerados veneráveis malas. É o caso de Pasteur, quando tentou provar que os micróbios causavam doenças, e seus colegas riam de sua seriedade, dizendo que seus micróbios eram entidades fantasmas. Freud e Jung, também foram tachados de algo parecido, por defenderem análises detalhadas e demoradas, que doutos da época consideravam perda completa de tempo. A lista é grande, com muitos notáveis.

Sei que nunca conseguirei ser muito comunicativo, simpático, sociável, extrovertido ou informal, mesmo porque vivo em razoável reclusão. Contudo, resta-me o consolo de pertencer a uma confraria de malas respeitáveis, e se não sou genial, prolífico ou realizador como outros, ao menos tenho ciência de que minha pequenez lhes acompanha a postura usual, em aceitar o epíteto, sem rancor ou mal estar, e jamais agir da mesma forma com mais alguém.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 03/11/2018
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