Sobre os sonhos

Deveria haver uma lei que estabelecesse uma pena para cada pessoa que destruísse o sonho de alguém. Mesmo que este sonho seja o mais ingênuo de todos. Sonho é sonho, não tem hierarquia. Não há grandes sonhos e pequenos sonhos. O pequeno sonho para um pode ser a razão de vida de outro.

E é incrível a capacidade que o ser humano tem de deixar de sonhar. Dizem que é coisa da idade. Deve ser por isso que jovens têm o sono agitado e os idosos dormem mais profundamente. A razão estaria na ausência dos sonhos. Alegam, inclusive, que há até mesmo fundamento bíblico para tal afirmação: o profeta Joel, ao enumerar os fatos extraordinários que antecederiam o Dia do Senhor, disse que entre sinais como o sol se convertendo em trevas e a lua em sangue, os anciãos (idosos) teriam sonhos. Fato extraordinário este!

Mas o que levaria à perda desta capacidade de sonhar? Seria algo genético? Consequência natural do envelhecimento? Morte de neurônios?

Acredito que não!

A razão estaria no confronto desigual entre sonho e realidade. Os sonhos vão morrendo, a realidade prolifera.

Lembro de uma cena da infância. Tinha menos de cinco anos. Minha tia Celina disse-me certa vez para não deixar um vidro de perfume aberto porque ele iria voar. Na minha mente, passei a ter uma mistura de admiração e medo por aquilo. Ele podia voar!! Um dia, quando não havia ninguém próximo, peguei o vidro com o coração aos pulos, fui até o quintal, abri a tampa e fiquei olhando para o céu, esperando o voo. Que decepção foi olhar para o chão e ver que o mesmo ainda estava ali. Saí de perto pensando que eu o estivesse atrapalhando, mas mesmo assim ele permaneceu imóvel. Fechei aquele vidro inútil e o coloquei, cheio de desprezo, no seu lugar.

Ao longo da vida, muitos outros vidros não voaram.

Assoviar a noite não atraía mais sapos, contar estrelas não causavam verrugas, jogar farinha no fogo não acalmava tempestade, São Jorge foi despejado da lua...

Quando havia uma impossibilidade, uma frase mágica resolvia tudo: Faz de conta que ...

Lembro do poeta Drummond, ao falar sobre a morte de sua filha, dizer que o mundo havia ficado peristáltico. Peristálticos são os movimentos involuntários do nosso sistema digestório. Peristáltico é o mundo sem sonho, sem fantasia. A vida transforma-se, então, em um espaço entre dois eventos: o nascimento e a morte. Ambos peristálticos.

Marco Aurélio Coqueiro
Enviado por Marco Aurélio Coqueiro em 13/11/2018
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