Em Algum lugar do passado (O capitão de Navio)

Sempre é bom recordar o passado. Eu, que tenho uma memória muito boa, lembro-me de muitas coisas que aconteceram na minha infância. Que se não foi risonha e franca, deu para suportar e tirar proveito de muitas coisas.

Este episódio eu o chamarei de Capitão de navio.

Era 6:00 da manhã de um dia frio, de junho de 1941. Iríamos a São Paulo visitar a Tia Dalinda, que era a irmã mais velha do meu pai, Heitor. Fomos eu, minha mãe, a Tia Maria, e a prima Cida. Embarcamos na estação da Paulista para fazer o trajeto até Jundiaí e, de lá, seguir adiante até São Paulo. O trem era rebocado pela locomotiva da SPR (São Paulo Railway), que era uma companhia férrea inglesa. A Companhia Paulista tinha uma linha eletrificada. Já a São Paulo Railway, não. Eram locomotivas a carvão.

Eu ia grudado ao vidro da janela do vagão para não perder nada. Eu ia marcando num papel o nome das estações. Depois de algum tempo chegamos a São Paulo. Nós iríamos à Avenida Álvaro Ramos. E a Tia Maria, que sabia ler e escrever, foi pedindo informações chegamos á casa da tia Dalinda. Era 9:30 da manhã, mas o frio parecia cada vez mais forte.

Depois dos abraços, a Tia Dalinda nos ofereceu café quente e com muitas coisas gostosas para comer; pão doce, queijos, manteiga e também uma coisa que eu nunca havia visto: salsicha grossa vermelha. Muito gostosa. Ela nos disse: “Quando vocês vierem a São Paulo venham bem agasalhados, pois o frio daqui é muito forte”. E vendo que eu tremia foi buscar um capote preto com uma âncora em cada braço. Era muito quente. E para a Cida, trouxe uma blusa de lã, também.

Eu gostei daquele capote na hora. E realmente eu não senti mais frio. Vale dizer que a Tia Dalinda tinha muitos filhos e filhas e as roupas que ela nos deu estavam bem conservadas, e eram dos seus filhos, todos já adultos, agora. Também deu algumas roupas para a minha mãe e para a Tia Maria.

Descrever a Tia Dalinda era muito fácil. Era muito simples, educada. Tinha um belo sobrado na Álvaro Ramos. Os filhos, todos, estavam estudados e bem colocados. Só que era domingo. Todos estavam em Santos. O marido da Tia Dalinda era o Agostim Ongaro, que também não estava, pois estava no rio de janeiro, na casa de um irmão seu.

Então, depois de um almoço suculento, ai pelas 16:00, nos despedimos dela e fomos à estação da Luz embarcar no trem que nos traria até campinas. E eu, com meu capote, parecia um capitão de navio. Ele chegava até os meus joelhos. Iria me servir por muito tempo. Lembro-me de ter usado esse capote naquele inverno todo. Ai minha mãe guardou-o no guarda roupas. No inverno do ano seguinte me lembrei dele, do meu capote. Entretanto não o achei. Então não perguntei, pois eu já sabia a resposta.

Depois de alguns anos falando do capote a uma tia, ela me disse: “vou te contar, mas guarde segredo”. “Como seu irmão também queria um capote igual sua mãe foi até a cidade. Mas o capote parecido era muito caro e não poderia compra-lo. E para evitar brigas, ela não me contou, mas o certo é que ela deve tê-lo vendido para a Dona Helena, que todos os meses passava comprando ou vendendo alguma coisa”.

E assim o meu capote de capitão de navio ficou em algum lugar do passado.

The End

Laércio
Enviado por Laércio em 17/11/2018
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