Faminto da Silva

Se houvesse saída à época, não teria ficado ali. Se por menor tempo que fosse alguém tivesse me aberto os olhos, não teria cruzado limite tão absurdo. Se algo tivesse dito que era bom estar fora de cena, não teria me forçado à situação. Ninguém é de ferro. Pensar assim deixou-me enferrujado. Não importaria ali se eram boas ou más pessoas, importava se eu as mataria ou não, porque nunca foi uma questão de estar o outro concordando ou não com o meu lado, mas de não permitir que alguém ou algo passasse do encontro vivo. Excluir cada um foi aparentemente fácil, e só isso. O resto foi tão complicado como continuar, revirar meus baús, minhas roupas, meus passos, minha vida até a insustentabilidade dos meus pés. De repente cada uma daquelas pessoas valia demais a mim. E eu que morri. Isolando-me na memória encontrei perdições sediadas no meu corpo, e cada marca era um signo da minha ventura. Derrota, fracasso, ignorância combinam com tatuagens de cadeia. Eu crescia nos rabiscos cravados à pele. Eu subia com o sangue que escorria da veia. Descia sempre para subir e admirar sobre o ombro a vida de merda. Todo esse sentimento não se sustenta senão por ressentimento e injustiça, e não sei até onde um para pro outro começar. Não sei se parei ainda e nem sei se haverá começo. A família da gente é a primeira a virar as costas, pior do que o Estado ou do que qualquer um na rua ou no morro que lhe cuspa na cara. É a pior fase até se alcançar a descrença. E lá a gente ainda chora, ainda sussurra no escuro por mamãe ou papai. Mesmo velho, mesmo experiente, mesmo forte, mesmo drogado, mesmo irado, mesmo virado no cão a gente chama mãe e pai e chora para ser escutado. E nada. Ninguém se dá conta nem de onde estamos. E se souberem onde a gente está também não pensam onde vamos parar. E se pensarem é errado. Nunca sonhei com revólver na cintura, na nuca, na bunda. Mas ele apareceu na minha vida e variou de posições sempre de acordo com as minhas condições. Se eu subia ele descia e vive versa, pouco importa. Hoje a gente bate na esquina para ser espancado na virada da rua. Hoje a gente come galinha para amanhã sentir que ela parece estar viva no estômago, beliscando por dentro a fome e o desespero da rua, da vida, do mundo que a gente leva. Não decidi muito por estar ali, mas não importa. Estou lá até quando o começo se virar a meu favor. Sorte pura. E quando nada dela, da sorte, aparece, a gente vai deitando na calçada, no mata, sobre o papelão, lençol velho e sujo e dormindo pesado. A gente vai sonhando, no sono, só nele, com vida boa, comida de toda espécie e hora, pela manhã, tarde e noite, e madrugada; e tem leite no café, manteiga no pão, não é só café e pão, como é quando a gente acorda. E também não tem ponta pé de polícia, playboy e latido de cachorro, nem tem o sol vivendo no rosto da gente, às vezes no corpo inteiro, queimando como é o inferno. No sono, que não é vida apesar de só sonhar quem vive, a gente se realiza. Quando o sono é mandado embora a gente levanta e apanha a bagunça que acompanha nosso preâmbulo de vagabundo, nossa mazela de todo dia e sempre, amém. Na maioria das vezes a cabeça faz uma reza, oração, e pede perdão. Por ter matado tanta gente em nosso coração. Amanhã, manhoso dia, se for possível, a gente amanhece vivo. Depois, se amaldiçoado ainda for o meu lado na vida eu volto a dormir na marginal, pelas beiras escuras das ruas. E todo mundo está perto, brincando de sonhar. Só eu sei o que é sonhar. Só não quero apanhar mais tarde de ninguém. Nem da polícia do asfalto nem da polícia do morro. Quero menos pó e crack, porque sou muito louco pela liberdade. Mas essa vida bagunça o querer, e daqui a pouco só vou querer crack e prisão. Meu nome, que nem na identidade está mais, porque perdi, um dia sai no jornal como um achado matinal, espancado, baleado, esfaqueado. Para matar gente como eu tem várias modalidades. Manchete de jornal para ser lida durante o café com leite e pão com manteiga. É só mais um bandido. E nem era. Fico famoso por pouco tempo se for morto, se vivo ninguém quer saber. Minha carne tem fome. Minha fome tem nome. Meu nome é ausente. Está pendente e negativado. Minha ausência faz barulho de tiro na favela e de chinela batendo na bunda no asfalto, correndo. O corre da gente todos veem e mesmo assim ficam todos bem quietinhos. Por enquanto estou indo, e vão me deixar ir mesmo. Sem nome, vagabundo, faminto da Silva. Quando brilhar no rosto de vocês o sol de verão em Copacabana lembrem-se todos que ele, o mesmo sol, queima bem perto de vocês o corpo inteiro, nu e morto de um faminto como eu, bem ao lado nos morros, favelas, marginais. Vão lembrar que tem gente rasgada por aí, enquanto se riem à toa da piada boba. E talvez mesmo ao lembrar vão continuar mais tarde a rir e a deixar a gente rasgada, sem nome, faminta, chorando. Se alguém puder, devolva-me o nome, um que seja bom. Sei que a maioria não pode. Sei que quem pode sou eu. Sei que a culpa a minha e que eu procurei. Também só sei que sei dessas afirmações, e que mais tarde vão esquecer tudo e rir e esperar mais notícias tristes. Sou mais um dos dramas sociais, dirá o jornalista do meio dia. E vai dizer que as investigações estão correndo. E muitos outros como eu correndo da polícia. Essa maldade toda existe toda hora. De hora em hora se repente a telenovela. Jovem é baleado e morto em confronto com a polícia. Só a gente confronta a polícia nessa história repetida. Repete-se ainda mais o tempo que nós temos para escapar, da cobrança da droga, da cobrança militar; de farda ou sem ela há braços prontos para apertar, pés armados para o chute e cara pra ser socada. Eu não escapo. Eu apanho. Eu que matei todos eles. Eles continuam. Longo tempo, demorado tempo, não encontra a gente na hora certa para desencapar a alma do corpo. Vive-se preso. Calma, digo a mim mesmo. Devagar, e tu consegue escapar novamente. Não mente quem diz que tu és do corre. Desmente quem diz que a gente não sabe o que faz. Triunfa sobre a cidade, à noite, o domínio do delírio. Eu vejo. Que do outro lado da praça há um beco, feito bordel. E lá se come a carne maldada como quem aprecia prato bem servido e de bom grado. Sinto medo de cada carro que passa. Pode vir de lá pedra, tiro, gasolina, mão fechada e disposta à pancadaria. Sobra algumas pedras e às vezes um punhal para defesa. Sobra mais a oração de São Jorge, do meu Jorge, guardião oculto. E deliro também com toda gente. E não nego que já voltei o punhal para senhoras, senhores, moças e rapazes, mas nunca iria ferir. A droga é quem fere a mim e aos que se tornam vítimas de minha dependência. Cortei-me. Mamãe, só não te peço que renasças e que lutes por mim porque seria em vão. E peço sim para que me perdoe por completo, porque sou teu por inteiro desde o leite que de ti tomei e do ventre de onde fui gerado e desde tua vontade em rebentar-me ao mundo, mesmo que tenhas te causado prejuízo e vergonha, mesmo que tenhas te deixado depressiva e preocupada, mesmo com todos os mesmos possíveis eu te amo, mamãe. E não se esqueces de mim. Que eu rebentado também arrebentei com o que pude, e com todos que matei falhei e muito, mas quisera Deus e São Jorge que eu pudesse parir o tempo na hora que me fosse desejado, pois voltaria pro morro e nunca iria estar ali, na calçada da esquina durante a noite, onde os nóias se encontram e desde então nunca mais reencontram o caminho de casa, da janela, da mãe à espera.