PISANTE E BECA NOS TRINKS

Em outras ocasiões e outros textos já falei sobre a complexidade de nosso idioma.

Uma das características recorrentes da dificuldade idiomática que se nos impõe é a corruptela vernacular (Isso morde?). Trocando em miúdos, significa trocar o significado de uma palavra, sua pronúncia ou escrita. É o caso do aviso prévio, que costuma ser citado como aviso breve, ou janta, em lugar de jantar. Temos as variações costumeiras nas conjugações verbais, em que foste vira fosse, chegaste vira chegasse, e assim por diante. As palavras terminadas em ditongo, acentuado com til, costumam ser freguesas também. Sugestão vira sugestam, e as demais, como questão, galpão, mourão seguem o mesmo destino. Há diferenças, como guidão, que dizem guidon, e benção, que se torna bença.

Os verbos utilizados na conjugação da primeira pessoa do plural, de modo geral, fazem lembrar as canções de Adoniram, quando ouvimos: cheguemo, vinhemo, vortemo, fumo, e isso no passado, pois no presente é nóis vai, nóis fica, nóis faiz ou nóis deixa pra lá. Êta cansêra!

Muitas palavras e expressões vão se modificando e simplificando, na boca do povo, para então serem incorporadas ao vocabulário formal. Um exemplo exemplar é o termo vossa mercê, que virou vosmecê, vancê e, finalmente você (embora vários digam, somente, cê). Há curiosas corruptelas de estrangeirismos, como oi, que vem do americano hi, forró, que vem da mesma origem em for all, x burg, também de lá e, originalmente, cheeseburguer. É claro que as adaptações estrangeiras são muitas e de vários lugares, mas a mente deste escritor está meio amnésica, ou como se diz, usualmente, magnésica.

Sempre que abordo este assunto, muita gente fecha a cara e me chama de esnobe, pois falar ou escrever corretamente virou esnobismo, num tempo em que o erudito é tachado de jeito burguês, enquanto o popularesco é a beleza da massa, do povo. E devo esclarecer, antes de mais algo, que gosto da simplicidade, da rusticidade, do modo simples da maioria de nossos compatriotas, e também de gente de outros cantos deste mundão. Aprecio o sertanejo raiz, as já citadas canções de Adoniram, gosto de ouvir Demônios da Garoa, Dominguinhos, só para citar alguns, dentre muitos que trabalham com a verve dos campos e das ruas.

O único senão pessoal é a tristeza de ver o esquecimento do ensino e conhecimento clássico, correto e formal, em função do enaltecimento da cultura popular. São coisas distintas, que devem ocorrer paralelamente, mas nunca se deve deixar que uma avilte a outra. Defender bandeiras, sejam quais forem, é atitude correta, mas se isso for feito com pleno conhecimento do linguajar pátrio, qualquer simplificação ou popularização da mensagem, sempre terá mais e melhores argumentos, retórica otimizada e domínio das figuras de linguagem utilizadas.

Li um artigo em que uma pessoa conhecida comentava sobre outra, dizendo que a tal gostava de viver de obséquios. Estava em local público, e assim que larguei a matéria, grande turma de adolescentes se aproximou e pegou o jornal. Ato contínuo, perguntavam-se, uns aos outros o significado de obséquio. Sem sucesso, inquiriram dois senhores próximos, que não tinham ideia do significado, também. Esclareci a turma e fiquei pensando, por um lado, que o autor do texto poderia ter usado favores, em lugar de obséquios (só pra facilitar), mas por outro lado, todos os garotos, mais os dois senhores, tinham celulares, e poderiam ter consultado a net, mas nem pensaram na iniciativa. A indolência mental prejudica, inclusive, a criatividade.

Vi uma modelo famosíssima, dizendo à sua entrevistadora (igualmente famosa), que não usava roupas, vestia indumentárias. Não tenho como saber se ela tinha noção de que as duas palavras têm o mesmo significado, mas é óbvio (claro) que considerava sua escolha bem mais chique, impactante. E pelo ohhhh da apresentadora, conseguiu o efeito desejado.

Adoro falar errado, usar sotaque caipira ou regional, usar gíria, mas sei como usar, ao mesmo tempo, o fraseado correto e formal. O apego linguístico desenvolvi por conta própria, debruçando-me sobre muitos livros, de todos os matizes, incluindo os didáticos e dicionários. Gastei anos a fio tentando entender tantos entremeios, e ainda ignoro mais da metade.

Lembro de uma pornochanchada dos anos setenta, em que ator conhecido, trajando a “indumentária” da moda, dizia estar com o pisante e a beca nos trinks. Dois casais ao lado, no cinema, de seus cinquenta anos presumíveis, não entenderam patavina. Lamentei! A função primordial do idioma é unir um povo, através do entendimento mútuo, mas tenho visto, desde essa época, uma divisão crescente, em que cada um defende sua visão, agressivamente.

Falta-nos consenso, na língua, em tudo, para progredirmos, e não boiarmos, tolamente.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 24/11/2018
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