PARCEIROS DA MOITA

Quando estudava no Colégio Estadual de Oliveira/MG, em 1955-56, tive

como colegas de classe, Nenê e Biel, dois amigos sempre acompanhados um do outro. Dois saudosos, queridos e divertidos moleques. Conseguiam achar e fazer graça em qualquer coisa que lhes chegasse ao conhecimento. Inegavelmente inteligentes, na sala de aula sentavam-se lado a lado para cochichar. Pareciam combinar perguntas e intervenções para um complementar a molecagem do outro, no sentido de fazer rir toda a turma e também o professor ou a professora. Contudo, nessa alegria não se faltavam respeito e consideração. Só quem soltava muxoxos (por prazer ou desgosto?), fingindo que não se dava às ousadias da dupla era o professor Leozinho. Franzino, efeminado no jeito de falar, de andar e nos gestos manuais, sempre com sua cabeleira loura aparada e bem penteada, Leozinho rigorosamente vestia blazer,

camisa cor-de-rosa ou branca e gravata borboleta estampada. Pianista de invejável competência, era bem quisto e prestigiado por todos oliveirenses. Onde se apresentasse, se fazia estrela. No Colégio Estadual, dava aulas de música e canto orfeônico. Nenê e Biel eram seus algozes perturbadores.

Tenho muita razão para suspeitar que os diálogos entre o professor

Raimundo (Chico Anísio) e dona Bela (Zezé Macedo), no programa humorístico da TV, foram inspirados nas cenas aprontadas por Nenê e Biel nas aulas do professor Leozinho.

Certa vez, Nenê e Biel, sacaram duas bananas de suas sacolas como se

fossem comê-las em sala. Professor Leozinho, bem ligeiro, aproximou-se deles e lhe tomou as frutas. Nenê, em voz alta:

- O senhor não vai gostar, professor! Biel completou:

- Estão muito maduras!

- Engraçadinhos ... Respondeu o professor, atirando as bananas pela

janela.

Nos fundos do colégio havia uma área de mata não muito fechada

conhecida por todos como “a moita”. Nos intervalos de aula e durante o recreio funcionava como bosque para curtição e relaxamento dos professores, sob o frescor das sombras. Por sua vez, os alunos divertiam-se subindo em árvores, pendulando no vai-e-vem de balanços amarrados nos galhos, brincando de Tarzan e pique-pega, lanchando ao estilo piquenique, trocando prosa etc.

Sobrava, ambiente até para furtivos namoricos não percebidos pelo rigoroso bedel Célio que por ali fazia ostensiva ronda disciplinar. Avançando pela moita, um pouco mais adiante, chegava-se à chácara de seu Olegário, repleta de laranjeiras, mas, protegida fortemente por cerca de arame farpado, com dez fios para evitar aventuras de destemidos estudantes.

Nenê e Biel galgavam os galhos mais altos de uma gameleira, localizada

na parte central da moita, de onde se divertiam a observar todo o movimento, inclusive os romances supostamente ocultos e não sabidos pelos demais moiteiros.

Só eles sabiam que a jovem professorinha de francês, Jody, namorava

Jardel, funcionário da Secretaria, além de Bicão, estudante do terceiro ano científico. Aos cochichos, juravam ter visto Leozinho aos sorrisos e de mãos dadas com Rubão, o espadaúdo negro faxineiro do educandário.

Certa manhã, não havendo a primeira aula para a turma de Nenê e Biel,

foi permitido aos alunos matar o tempo na moita, sob a vigilância de Célio. Na trilha central havia um despacho de macumba. Sobre um pedaço de lona, arrumados estavam um frango assado, farofa amarela, cachaça, fatias de bolo, velas já consumidas e trapos de roupa rasgada.

O evento alterara a rotina do colégio. Todos queriam ver para crer e temer. Benziam-se, pelo menos três vezes, e até rezavam os pasmos curiosos ao encarar a cena. Qualquer toque nas costas era um baita susto. Quem fora o autor ou autora daquela obra? Era a pergunta que não queria calar. Horrorizados, o Reitor e a Secretária, Irmã Cremilda - ambos católicos absolutos, logo tomaram o fato como grave insulto e achincalhe de gente anticristã, certamente, estranha à escola. Afinal, na ausência de barreiras, pessoas comuns podiam frequentar a moita, embora pouco ou quase nunca se as viam por lá.

Logo se pensou em convocar Frei Otto, professor de Latim, para, sob

proteção divina, desmanchar o cenário. Em vão, fora sua própria ausência por motivo de doença que levara alunos tão cedo à moita. Até o Bispo fora contatado para orientar os procedimentos. Presumia-se que só um religioso sob estola poderia estar imune às más intenções daquele despacho.

Enquanto ferviam as considerações, Nenê e Biel buscavam respostas no

cenário. Firmavam atenção no rótulo da cachaça e no trapo de roupa. Achavam ter visto uma garrafa vazia daquela pinga no lixo do colégio e o pano lembrava padrão e estampa de camisa já vista no corpo de alguém. Não descansaram até acreditarem em sua versão. A camisa, antes no corpo de Rubão, agora aos trapos servia-lhe como pano de limpeza de móveis.

Saberiam ainda que Rubão não dispensava um botequim e goles etílicos nos finais de semana. Lembraram-se, ainda, de ter visto o professor Leozinho afanando discretamente um pedaço daquele pano esquecido na sala de aula.

Para confirmar suas suspeitas, na aula, enquanto Leozinho comandava o

solfejo de “sol, sol, fá, mi/ sol, sol, fá, mi/ sol, lá, sol, fá, mi, ré/ ré, mi, fá/ ré, mi, fá/ ré, mi, fá/ sol, lá, sol, fá, mi, ré, dó”, Nenê e Biel, cantava: “cai, cai, Rubão/cai, cai Rubão/ aqui na minha mão! ... Foi o suficiente para deixar Leozinho trêmulo, sem graça e desnorteado.

Mas, nunca – ao que sei – revelaram suas descobertas.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 27/11/2018
Código do texto: T6513193
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.