MAS NÃO DEVIA

A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma a acordar cedo. A gente se acostuma, no elevador, a dar bom dia ao vizinho sem prestar atenção nele. Acostuma-se a tomar café na mesma padaria todos os dias, a fazer sempre o mesmo trajeto para o trabalho. Dar os mesmos recados, reclamar das mesmas coisas. Acostuma-se a passear com o cachorro sempre na mesma hora. Acostuma-se à solidão e maldiz quem nos tira dela, mas não nos faz companhia. A gente se acostuma.

E esse acostumar-se gera em nós mudanças de hábitos. De repente, a gente se percebe fazendo coisas que não fazia, mas que acostumou a fazer por conta de querer agradar o outro. Sim, a gente muda... Muda a forma de se vestir, passa a usar o mesmo perfume. Procura uma academia para tentar ficar mais magro. Passa a ouvir músicas que sequer conhecia. Passa a assistir filmes “cult”, quando antes só assistia a comédias. Busca falar de autores clássicos. Vai fazendo diferente de antes, sem dar conta da mudança. Acostuma-se.

Outrora, acostumei-me com você... Acostumei-me a não ter de esperar por você assim que descia do ônibus. Acostumei-me a falar com você ao telefone todos os dias. Acostumei-me a esperar com ansiedade pelo fim de semana. Quando estava aí, acostumei-me a sair para o teatro, a sair para dançar e, lá pela madrugada, passar na banca de jornal comprar a revista da semana e os jornais do dia, sempre no domingo.

Já na cama, acostumei-me a fazer amor com você e, depois, antes de levantar, ler os jornais, folhear a revista. Na sua ausência, acostumei-me a comer cereais no café da manhã e aprendi a gostar de camarão. Parei de fumar. Acostumei-me a ser interessado, sem ser interessante. Sem me dar conta, acostumei-me com a gente.

Fui me acostumando com sua elegância, seus gestos, seus hábitos, seu cheiro. Acostumei-me com a maneira de você me olhar. Acostumei-me com o seu pedido de casamento no topo da escada rolante. Acostumei-me a jogar fliperama juntos. Com seu sorriso e seu jeito de olhar eu me acostumei. Vidrei-me no seu toque. Acostumei-me com sua volúpia, sua lascívia, seu sexo. Acostumei-me quando você foi embora. Acostumei-me quando você atravessou oceanos. Depois... acostumei-me com sua ausência.

A gente se acostuma, mas não devia...

Peluro
Enviado por Peluro em 29/11/2018
Reeditado em 13/12/2018
Código do texto: T6514630
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.