Resoluções para o ano novo

Certamente que o ser humano, dentre tantos dons, possui o dom de iludir. Não é um dote exclusivo de sua espécie. Outros animais também o possuem. Entretanto, além de inato é naturalmente e muitíssimo desenvolvido pelos criados em imagem e semelhança, Adão e Eva, surgidos neste planeta para nele subsistirem e presidirem as demais espécies, mercê de Deus ao conceder-lhes razão, inteligência e memória. Privilégios congênitos, para que se aprimorem com o passar dos tempos. E nos tempos primeiros, quem lhes teria feito perceber o dom de iludir, da indução a uma falsa crença? A serpente viria como a primeira mestra nessa arte quando ardilosamente enganou nossos primeiros antepassados. Sim, porque logo ao abocanharem a maçã perceberam que haviam sido iludidos, habilmente persuadidos a degustá-la, acreditando que assim lhes afloraria à mente a ciência do bem e do mal, ou, quem sabe, no fruto proibido estivesse o néctar de todas as existências. Logo se deram conta de que o bem e o mal constituíam o todo do ser humano, e que seria simplista o raciocínio de que um conseguiria dominar e excluir o outro, tornando-se absoluto. Essa relatividade mostrou-lhes o caminho da evolução longo e cheio de obstáculos; e descortinou-lhes uma vida representativa de um enigma indecifrável.

Movido por sentimentos abomináveis – inveja, ciúme, despeito – o espírito da desarmonia encarnado em serpente tirou das criaturas o estado de inocência, nelas despertando a percepção da existência de outra região além do paraíso em que viviam. A partir desse momento perdido nos anais do mundo, homem e mulher começaram a desenvolver o poder do discernimento e passaram a adotar seus critérios pessoais. Despertada a razão para a realidade de um mundo hostil e selvagem em que lhes seria exigido muito esforço para sobreviver, nossos antepassados fizeram então juízo de suas limitações e de sua condição de criaturas. Deram-se conta de que eram peregrinos de origem e rumo desconhecidos, trazidos à animação neste planeta. Decerto também ajuizaram que a vida, além de insondável mistério, conservava em seu cerne o tronco de todas as ciências dos mundos criados e dos incontáveis conhecimentos ainda não desvendados pelas criaturas. Entre os pouquíssimos compreendidos está a intrincada teia da psique, dos emaranhados fios do comportamento humano. Adão e Eva logo sentiram que em seus espíritos se ocultavam os sentimentos – o amor e o ódio, em primeiro plano –, percepção essa que os fez deduzir, pela alternância de calmaria e tempestade dessas paixões, a presença das manifestações de Deus em qualquer tempo e lugar. Estava descoberta a dicotomia harmonia e dissonância no conceito de equilíbrio mantenedor do universo como tal o concebemos.

Em mancomunação com a serpente formaram o primeiro triângulo enganoso. O amoroso viria após, visto que na ocasião existia somente um homem e uma mulher. A serpente entra nesse riscado apenas como o espírito malévolo, não movido por qualquer paixão mundana, nem sequer interessado em amor. Participa desse enredo como patrono de todas as imposturas somente para deliciar-se com a visão da tragédia alheia, do circo pegando fogo. Até então, homem e mulher detentores de privilégios não desenvolvidos tornam-se amantes de suas próprias aparências e, ao entenderem seus espíritos conduzindo corpos carnais e finitos, vertem as primeiras lágrimas. Entretanto, os desencantos muitas vezes trazem à tona novas descobertas: ao serem iludidos, notaram-se possuidores de incontáveis dons, inclusive também sabiam enganar. Um poder nunca antes usado, em próprio proveito ou de qualquer apaniguado. Passaram então a usá-lo. No princípio por experimentação, pura diversão de criaturas ainda incipientes na arte. Depois, numa atitude inerente ao ser humano, de modo aprimorado. Convivendo em nova circunstância, Adão e Eva passaram a trocar entre si falsos valores. Aperfeiçoaram-se no ofício de articular palavras enganosas.

Esse dom multiplica-se conosco e nos acompanha em todos os momentos, em todos os cantos do mundo, desdobrando-se em múltiplas facetas, em inúmeras máscaras, em truques, malandragens e dissimulações. Faculdade comum a todos, a começar pelos monarcas e seus conselheiros sapientes até chegar às pessoas comuns. Os tempos se passam e o dom permanece cada vez mais aliado à arte teatral, à encenação. Sobrevive e se requinta ainda mais no jogo de interesses, pois que, claro, quem engana quer usufruir vantagem sobre o enganado. A prestidigitação vai ao palco em troca de moedas para a garantia da sobrevivência do ilusionista. Mesmo cientes do logro, ao artista concedemos nosso perdão transformado em aplausos de admiração à sua técnica. Pagamos pela diversão e, ainda que fiquemos sem saber como nos deixamos enganar, não nos sentimos mal por isso. Entretanto, nossa reação muda quando não se trata de brincadeira. Sentimo-nos traídos, vítimas de embuste doloso.

A arte de iludir aprimorou-se tanto, que o ser humano também se descobriu capaz de enganar a si próprio, tornando-se portador de personalidade dúbia, julgando-se ao mesmo tempo algoz sem remorsos e vítima merecedora do cadafalso. A ilusão pode nos fazer acreditar viver em um mar de rosas, pouco importando a opinião alheia. Conquanto felizes, assim viveremos sob quaisquer condições, imunes aos desencantamentos. Podemos viver em estado de felicidade se nos sentirmos amados pelas pessoas de quem desejamos amor – ilusão prazerosa e arrebatadora.

Essa ilusão, entretanto, não nos traz nenhum proveito se nos permite esconder, dissimular de nós mesmos os receios de enfrentar o futuro. Em maior parte dos casos, quando disfarçamos nossa apatia sufocamos nossos desejos. Usamos o dom de iludir contra nós mesmos principalmente no início de cada ano, ao tomarmos resoluções as quais sabemos de antemão que serão adiadas para futuros janeiros. Somos condescendentes com nossas indecisões, amparando-as em confusas explicações ou frágeis justificativas. Assim o tempo passa, sem nada de novo a cada ano, dependendo, é claro, se nos permitirmos à ilusão de uma vida sem sentido, sorvendo um placebo que nos conforta do desânimo ou do conformismo de deixarmos esta vida nos levar até o fim, dissimulando uma suposta impotência para executar nossas melhores decisões. Bem à vontade podemos enganar a nós mesmos com promessas vãs, deixando propositadamente os dias se passarem sem que tomemos a iniciativa de mudar nosso rumo. Apostando no contrário, com bastante energia podemos alimentar o firme propósito de transformar nossos sonhos em realidade, bastando para isso que comecemos a fortalecer em nossas mentes os projetos realizáveis ou metas possíveis de alcançar, deixando de nos iludir com protelações, para que nossos sonhos não sejam apenas sonhos e nada mais.

Que nossas melhores resoluções se cumpram. Sem enganos