ESTEREÓTIPOS

Ao andar do tempo, as experiências, mesmo que informais, nos legam relativa segurança e constroem algumas verdades intransigentes, pois necessitamos de certezas e raramente nos dispomos a submetê-las a uma reavaliação.

Para manter o reinado da inteligência, não é incomum preservarmos estreito relacionamento com o menor esforço. Ou seja, a priori, cultivamos ideias básicas que se reúnem para formar sentenças inquestionáveis. Tal sucede com a imagem pessoal, que mesmo sem corresponder a realidade, dificilmente é modificada nas instâncias sociais.

Ao gosto das conveniências, diariamente nos associamos a julgamentos estimulados pelo ódio, pela discriminação, prevenção, intolerância ou que são incentivados pelos ditames da simpatia, da confraternidade ou do exagerado apego. Em muitas ocasiões, nos distanciamos do que é real por estarmos no redemoinho desses fatores.

Edgar Morin, ao discorrer sobre a cegueira do conhecimento, assinalou que as ideias, além de sujeitas ao erro, protegem ilusões gravadas no sistema ideológico. Esse engano dos sentidos oferece resistência tanto as informações “inconvenientes” como as que de imediato não possam ser assimiladas.

A assertiva do filósofo é categórica e propicia o alcance de fatos curiosos por onde facilmente se identificam juízos preexistentes, que nos induzem a concepções baseadas na exagerada intolerância ou na extrema afeição.

O juízo emotivo ou superficial se distancia do raciocínio lógico. Em consequência, podemos experimentar vários contrassensos. Nessa linha, é possível observar que o mesmo quadro, assinado por artistas diferentes, tende a incentivar análises distintas não pela qualidade da obra, que na verdade é a mesma, mas pelo autógrafo que nos conduz a registros biográficos tecidos pela intolerância ou pela simpatia.

Sabe-se que há muito a ser explorado pelo pensamento, mas invariavelmente, preferimos a sombra das ideias prontas ou o estímulo das superstições.

A razão também necessita se precaver dos encantadores, que espelham qualidades inexistentes. Grácian, na “Rapsódia Espanhola”, contribui para o tema, ao mostrar a esperteza de um prestímano que anunciava as maravilhas de sua arte. O finório, contudo, alertava que seus prodígios desfilariam apenas aos olhos de pessoas com espírito iluminado. Nem seria necessário dizer que todos, para se mostrarem esclarecidos, aplaudiam o grande “talento” do impostor.

Efetivamente, às vezes, é preciso ir além do pouco que se sabe para iluminar a inteligência.

Na história, são comuns relatos fantasiosos que perduraram no tempo. Uma dessas mentiras foi industriada por Dario I, rei persa, que venceu os egípcios. O seu antecessor, Cambises II, havia sido derrotado vexativamente em El-Kharga. Para apagar esse fato e levantar o moral de seus guerreiros, Dario divulgou que as tropas de Cambises haviam sido cobertas por uma tempestade de areia. Em tempos atuais, arqueólogos concluíram pela mistificação do ocorrido. Até então, a divulgação falsa por séculos reinou soberana.

E não para por aí. Os mitos são fartos. Robin Hood não era bandido generoso nem roubava dos ricos para alcançar aos pobres. Em verdade, ele se revoltou contra o rei Ricardo II para não pagar impostos.

Van Gogh, por sua vez, não decepou a orelha, mas um pedacinho do lóbulo esquerdo.

Na lápide de uma Igreja de Colônia está esculpida a lenda envolvendo milhares de donzelas assassinadas pelos hunos de Átila no ano de 449. O número real, no entanto, envolve onze virgens que foram sacrificadas, e não onze mil como viajou no tempo.

Foram pintores renascentistas que colocaram estrategicamente a maçã nos Jardins do Éden para seduzir Adão e Eva. Entretanto, o livro sagrado não especifica qual a fruta que não poderia ser degustada.

As narrativas extraordinárias são incontáveis. Deixando de lado as fakes atuais que devem ser objeto de análise especial, convém citar a Inconfidência Mineira. É certo que a revolta de 1789 foi travada contra os altos impostos exigidos pela Corte, mas a ideia dos revoltosos de proclamar uma república independente e sem escravos confinava-se apenas ao âmbito das Minas Gerais. Tiradentes, de origem humilde, embora não representasse uma expressiva liderança, foi o único que pagou a insurgência com a própria vida.

Em períodos recentes, é a habilidade política que vem se especializando no sentido de emprestar sofisticado retoque à mentira. Quando os simpatizantes se deixam hipnotizar, até os profissionais menos habilidosos têm sido bem sucedidos ao substituir a verdade pela ilusão, o raciocínio apurado pela paixão. E justo aí, o interesse público sucumbe dividido entre torcedores kamikases. Nelson Rodrigues, com sua linguagem ferina, disse certa vez, que a paixão política não possui grandeza, por ser capaz de imbecilizar o homem.

Como se percebe, a ficção e a hipérbole podem interferir na superfície ou no âmago da realidade. Por isso, é saudável que o caminho entre as ideias seja percorrido de forma constante. Nesse aspecto, Raulzito tem absoluta razão: “É preferível ser uma metamorfose ambulante do que ter àquela velha opinião formada sobre tudo.”