A COZINHA



"...E quando as lembranças fazem ranger as dobradiças do tempo,abrem-se as portas ilusórias dos guarda comidas...O ontem que parece tão distante,é ainda,o nosso hoje.Na mesa posta,arabescos de vapor no café das reminiscências...”






Ele fora imaculadamente branco até o dia em que            no portão,aparecera o mercador de ilusões trazendo a novidade.
_Decalcomanias !... Minhas senhoras.
É o que existe de mais novo nos grandes centros.
Basta umedece-las e  irão aderir pra sempre; nas louças, nos esmaltados, até na madeira pintada.
Proferiu o seu discurso lançando um olhar ao guarda comida azul, recém pintado.
Espalharam-se então, sobre a mesa, as flores, os animais, as frutas e algumas paisagens.
As duas senhoras, encantadas, optaram pelas frutas.
De posse de uma pequena bacia cheia d´agua, o mascate operou o milagre da reprodução dos figos, das peras, dos morangos...
Direto no esmalte branco do fogão "Marumbi".
As mãos do milagreiro, umedecidas ainda, transpareciam um ligeiro tremor e um brilho de satisfação varava-lhe os olhos miudinhos soterrados pelas bochechas ao ouvir soar em uníssono das bocas deslumbradas:
_Oohhh !... Que lindo !...
Desde então o fogão jamais fora o mesmo.Desencadeara-se uma série de cuidados para que nada lhe fosse esbarrado,ainda que levemente, como forma de preservação do viço das cestas de frutas que permaneciam orvalhadas apesar do calor do fogo.
O guarda comida fora acarinhado com algumas flores,brotadas estrategicamente pelas mãos do milagreiro.
Sobre o fogão, agora todo frutado, um pano de parede (peça de enxoval) mostrava nos pontos cuidadosamente bordados,um ninho de pássaros com filhotes,de bicos abertos,sendo alimentados. A frase de efeito,igualmente bordada,envolvia a ninhada com os dizeres:

"Assim como um pássaro volta ao seu ninho,retorna um esposo ao lar que tem carinho".
E naquela casa,alegres retornos ocorreram por uma vida inteira.
Algumas canecas de louça,com motivos frutais,foram então adquiridas.E os cafés passaram a acontecer num clima e ambiente de pomares. O real,oferecendo-se em cores e cheiros pela janelinha de madeira,feita olho mágico a sondar pereiras.O ilusório,desenhado nas laterais do "Marumbi",nos relevos das xícaras,na ágata de bules e chaleiras.
Pelo guarda comida enfileiravam-se nos ganchos as canecas restantes dividindo espaços com mantimentos,temperos,óleos e fermentos.O vidro sextavado,de boca larga,recebeu uma etiqueta ricamente desenhada.As letras,caprichadas,personalizaram-no com o termo:
"Salamonhaco",cuja intenção era dizer:Sal amoníaco.O desenho de alguma coisa lembrando biscoitos,tentava justificar a finalidade do pósinho branco e mal cheiroso.
Sim !...Era preciso mantê-lo.
A mais velha das senhoras,minha  avó paterna, era expert no feitio de bolachas caseiras.
Armazenava aqueles retângulos,duros feito telhas,em sacos de algodão branco.
_Latas preservam umidade,dizia.Prefiro os sacos para mantê-las "crocantes".
Céus azulavam-se sobre o azul do guarda comida e os céus das bocas experimentavam o manjar dos deuses a cada "telha" umedecida em caneca de café com leite.
Acontecia o "milagre do crescimento" .As bolachas inchavam-se,derretiam-se pela boca,e minúsculas sementinhas de funcho desprendiam-se da massa estimulando o paladar.
Do guarda comida,presa na lata amarela,a vaquinha malhada da manteiga "Santa Rosa" vinha para a mesa,pastando interminavelmente o verde gramado de sua embalagem.E na placidez da cozinha do tempo,o pão caseiro,fatiava-se imaculadamente branco feito o "Marumbi",antes dos decalques.
As tabuas largas do assoalho,corriam de uma para outra janela cruzando em frente ao guarda comida.
Em seu interior havia bem mais que o sustento para o corpo fisico.Guardava-se suprimentos de afetos que ainda hoje,em ternos recordares,caem feito"manah",saciando os instantes em que a alma mostra-se faminta.

Joel Gomes Teixeira