NUNCA FUI LINDO

Nunca fui lindo, rico e muito menos o gostosão das gatinhas. Eu me sentia um patinho feio, se comparado ao “Feijão”; curioso apelido de um garoto da minha sala à época em que cursávamos o segundo ano ginasial, hoje ensino médio.

Era sempre a mesma coisa. Quinze minutos antes do início da aula chegava o Feijão, todo pimpão, vestindo as roupas da moda com sapatos de salto carrapeta, calças boca de sino com estampado xadrez e correntes de ouro no pescoço.

Isso lá pelos anos 70, é claro. Hoje, o Feijão entraria em sala sem a corrente, e olhe se ainda portasse no alto do tronco, o pescoço. Minhas chances eram mínimas. O Feijão roubava a cena com suas histórias sobre o alazão que tinha montado no haras do tio no final de semana. Eu, quando muito, comentava sobre as peladas nas tardes de sábado no campinho lá do bairro.

Meu desejo era dar uns catiripapos naquele indivíduo gabola e fanfarrão e roubar-lhe de vez os olhares das meninas.

— Só porque era mais bonitinho do que eu e tinha os olhos verdes? — Perguntava a mim mesmo.

O caderno de enquetes circulava rápido na sala de aulas, de carteira em carteira, nas mãos de todos e todas, com direito a perguntas e respostas sobre amores e experiências interessantes de cada um. Perguntas sobre o que mais agradava a eles e elas, mas com certa malícia, sugerindo as características de quem se estava a fim.

Não havia muito mistério na análise e ficava muito claro que o dito colega era, disparado, o objeto de desejo de todas elas.

— Droga! Sempre ele! Eu precisava urgentemente de algo tipo — doses extras de feromônio — para conquistar as garotas e pôr fim à supremacia do feijão.

Mas teria que ser algo consistente, de modo a atrair as pitchulecas.

Estávamos em meados de junho e os preparativos para as festas do mês iam de vento em popa, fazendo dos intervalos um turbilhão de ensaios de canções que animariam a quermesse, antecipando a inevitável e repetitiva cerimônia dos pares da quadrilha.

Isso mesmo, naquela época formar quadrilha fazia parte do imaginário folclórico da meninada, e em nada lembrava a bandalheira da política atual. Sabe-se lá como, Dona Carmem, minha professora de Artes, descobriu que eu sabia dedilhar algumas músicas no violão e fez que fez até me “transformar no ídolo da jovem guarda local e cantor oficial da quermesse” que animaria a festança no palco improvisado.

E lá estava eu, de repente, em condições de brilhar diante das garotas, território exclusivo do Feijão dos olhos verdes.

— Ah! Feijão, me aguarde, pois eu não perderei esta oportunidade por nada! E assim fui, tateando e afinando o violão que ganhara de presente de meu pai. Um lindo Gianinni com rococós filetados na face de madeira clara. As primeiras notas vieram meio travadas, mas era natural; afinal estávamos em pleno ensaio.

Qual não foi a minha surpresa quando naquela mesma tarde, na aula de Artes, vi surgir a figura do mancebo em sua armadura bem cortada e plantada sobre os saltos carrapetas. Boquiaberto vi, pela primeira vez, os olhares se voltando para mim e meu violão Gianinni com seus filetes bem elaborados.

A batalha estava apenas começando e de repente, uma das “gatinhas” sugeriu que eu cantasse uma das músicas do Paulo Sérgio; um ídolo famoso à época e que lembrava muito o estilo do rei da jovem guarda Roberto Carlos. Um frio na barriga e a música começou a saltar para fora de minha boca, acompanhada da sinfonia de meu violão.

A professora vibrava com minha performance e os elogios pululavam seguidos de sorrisinhos encantadores, por vezes marotos, de minhas “tietes”, fato que não passou desapercebido pelo Feijão. Meio contrariado e com indisfarçável antipatia sugeriu uma música de Erasmo Carlos, da qual eu não me lembrava bem da letra.

Pedi, então, que entoasse uma canja; um curto trecho para clarear a memória. As caretas diante da palha medíocre foram notadas de longe, a quilômetros. Seu timbre fora do diapasão em nada lembrava sua face bem talhada e seus olhos verdes. Me senti diferente, especial, e um contorno novo se configurou… o bode expiatório de minhas broncas tremia, ali, diante de mim e de todas as garotas, que me olhavam com outros olhos.

Os acordes sugeridos pelo meu arqui-rival acabei tirando de letra e o ambiente acordou de vez, se enchendo de alegria. O rebolado compassado passou a mexer até com aqueles que passavam pelos corredores.

Senti-me novo — alma lavada e enxaguada como dizia Odorico Paraguaçu, personagem da telenovela de Dias Gomes, O Bem-Amado — naquele momento eu era o rei, o garoto de 14 anos que chutava bola nas peladas do bairro e que, pelo menos por um momento, roubava a cena e os olhares das garotas do temido Feijão.

E veio a festa junina, suas músicas e minha performance.

Foi um sucesso. Sucesso este coreografado por uma trupe de belas “Feijonetes”. Bem nutrido, deixei de me sentir o último da classe, o garoto sem carrapetas e haras. Não me sentia lindo, rico e tampouco o gostosão das garotas, mas pude notar que a beleza pode vir de pontos tão ou mais distantes que a própria silhueta sugere.

Minha beleza não estava em meus olhos nada verdes, nem em meu rosto nada belo. Fui notado pela beleza de minha figura humana e meus valores mais simples. Minha música cativou os olhares e corações.

O próprio Feijão, depois desse dia, passou a me tratar com mais respeito e consideração.

Pelo visto cresceu um pouco, ao ponto de descer de sua majestade e compartilhar de minha amizade de forma mais ampla e equilibrada.

As pitchulecas? Ah! Isso talvez eu conte em um outro momento, pois muita coisa mudou desde então, para melhor…muuuito melhor.