Pequenas epifanias

“Pequenas epifanias” não foi minha criação, é verdade. Caio Fernando de Abreu utilizou a expressão como título de seu livro de crônicas inaugurando um paradoxo que me encantou desde a primeira vez que vi aquela capa. Afinal, como poderia a epifania, tão gigante e significativa, ser pequena? Li e reli o livro e, após integrar a expressão ao meu vocabulário, descobri que a maioria das epifanias são, de fato, pequenas. Diria que singelas, inesperadas, quase tímidas. Confesso que tenho outro significado para a expressão: ela também poderia ser utilizada para designar os momentos em que, certos de que estamos no caminho correto, descobrimos que deveríamos mudar o rumo após a tal epifania que ressignifica toda a vida.

Muitas vezes, entretanto, não sabemos detectá-las (eis aqui mais um paradoxo: uma epifania pode passar despercebida). Tenho me esforçado para reconhecer uma epifania no momento em que ela acontece ou, ao menos, algumas horas depois para, então, experimentar toda a significação do momento. Lembro-me, ao menos, de duas:

Há alguns meses, quando começava a usar meus cabelos cacheados, estava diante da porta de minha sala de aula criando coragem para entrar e enfrentar todos os colegas que reparariam no meu cabelo. Ansiosa, meus pés estavam presos no chão temendo que o mundo me visse e, de repente, um colega me cutucou. “Você está linda! Parecendo outra pessoa”. Na mesma hora, a espontaneidade e sinceridade com que ele fazia o comentário me conduziram a uma profunda reflexão acerca de quem eu era: afinal de contas, que pessoa seria essa? Quem seria essa nova mulher de cabelos cacheados? Com quem ela parecia? Será que ela dormia bem? Confiante e curiosa de mim, entrei na sala e sentei em minha cadeira. Respirei fundo e aguentei, com tranquilidade, os olhares ressabiados de meus colegas e, quando a coragem já se esvanecia ante tanta atenção, recebi uma mensagem desse colega: era um poema de Clarice Lispector, sobre mudanças. Um poema que eu não conhecia, da minha autora preferida. Dizia o poema que se intitulava “mude”:

Tente o novo todo dia. O novo lado.

O novo método.

O novo sabor.

O novo jeito.

O novo prazer.

O novo amor.

A nova vida.

O medo e a angústia daquele momento transfiguravam-se na alegria por estar, finalmente, mudando. A menina insone, tão ansiosa, que tanto pedia da vida, ali, tinha um outro semblante. Talvez mais calmo, mais leve, com mais vida. Aquele colega, que não me conhecia, viu mais do que muito dos meus amigos, do que a minha família ou, quiçá, do que eu mesma mesma. Aquele pequeno gesto, ir com o cabelo cacheado na faculdade, era, agora, o início de uma profunda metamorfose. Acontecera, diriam os poetas, uma pequena epifania. Elas, entretanto, podem ser solitárias e eu nunca mais conversara com aquele colega que, naquele segundo, me foi tão importante.

É claro que existem epifanias maiores que outras: em uma festa em que acompanhava meu namorado, um de seus amigos me dissera que gostaria de me contar uma coisa. Curiosa, ouvi-lhe dizer que era leitor dos meus textos, que os adorava e que acreditava que eu deveria publicar um livro. De repente, ele me perguntava sobre minha Avó Zita, que estudara na mesma faculdade que eu, sobre o show do Frejat que, por acaso, ele também havia ido e sobre as referências ao meu namorado, que ele conhecia bem. Naquele segundo, o hábito singelo da escrita tornara-se robusto e fitei um futuro junto às palavras. Eu, que não tive a coragem para fazer letras, tinha um leitor! Um leitor que me conhecera por conta própria e que, pasmem, acompanhava meus textos. Ele me disse, ainda, que minhas crônicas o ajudaram a passar pela faculdade com mais leveza e que o meu modo de ver a vida, tão lírico, o contagiara. Senti-me, naquele momento, lírica e percebi que, à parte a minha falta de coragem, as palavras ainda poderiam ser importantes.

Essa epifania, entretanto, sinalizava uma nova amizade em minha vida. O meu primeiro leitor poderia ser, também, um novo amigo e foi aí que descobri que as epifanias, ainda que singelas, poderiam transformar-se, a todo tempo, em grandes episódios em nossas vidas. De presente, dei ao meu novo amigo um livro do Caio Fernando de Abreu, intitulado “pequenas epifanias” e desejei que, a todo tempo, ele se atentasse a essas tais epifanias que tanto significam as nossas vidas.