Fugaz

Não sei precisar por quanto tempo fiquei sentado no carro a olhá-la. Imagino que tenham passado horas, estava com fome e a sede já me tirava a paciência. Assim presumo que estava ali há bastante tempo, certo de que valia a pena, vê-la mesmo que por segundos seria o melhor momento do dia. E isso já acontecia há alguns...

Mesmo nos dias mais chuvosos eu a esperava passar. Trancado no carro, tentando disfarçar minha presença, aguardava os pequenos e poucos passos que ela dava entre a porta de sua casa e a de entrada no carro que a buscava. Às vezes sorridente, outras, triste. Eu sabia suas reações, eu sabia lê-la ainda que isso não bastasse para que ela considerasse nossa volta.

Ela é assim: encantadora. Não apenas no imaginário lúdico e romântico da palavra. Era realmente encantadora. Seus cabelos ruivos de um tom acobreado fascinavam a cada movimento delicado que sua cabeça fazia ao caminhar. Levemente ondulados tinham um aroma próprio, não havia a mínima chance de descrever. Emolduravam seu rosto alvo. Como sua pele era branquinha! Tão macia que sentia a suavidade apenas olhando pra ela. O rosado da boca era inacreditavelmente sedutor. Misturava a inocência de suas palavras com a malícia de seu sorriso mais sombrio. Ah sim, esqueci de comentar, ela tinha um olhar melancólico, quase como uma promessa de infelicidade contínua. Acho que isso me hipnotizava, a ideia de que eu poderia mudar essa tristeza me encorajava.

Mesmo sabendo de tudo isso, havia algo em sua personalidade que era indecifrável. Essa dualidade de emoções que ela despertava em mim intrigava-me até ao ponto em que cheguei: vê-la por dentro do carro todos os dias.

Hoje ela me viu. Eu sei que sim. Senti um arrepio, um frio subindo por minha coluna. Olhou diretamente pelo vidro do carro e, sutilmente, arriscou um pequeno sorrido de canto de boca. Com certeza havia uma satisfação insana de saber que eu a seguia, ficou claro por este gesto maléfico de me sorrir sem a menção de ser proposital. Ela é encanadora, mas como disse, sem todo o sentido lírico da palavra, não... ela era encantadoramente envolvente. Diga-me você, o que pensa disso.

Lembro-me do dia em que a conheci. Inacreditavelmente caia uma espécie de neve em pleno mês de outubro. Cristais de açúcar pendiam entre nós, enquanto ela me beijava suavemente. Acho que foi por isso que senti um gosto amargo: não era açúcar, muito menos um beijo. Achei que toda candura que ela mostrava em seus gestos fossem complementares à sua personalidade... esta foi a impressão mais vã que tive.

E não ficou somente nisso. Meses depois, sem notícias, sem encontros, ela me liga. Quanta doçura em sua voz. Apenas me dizendo o local e a hora. Sem questioná-la, aguardei a data contando no calendário quantas noites faltavam para que eu pudesse novamente tê-la comigo. Após longa espera fui vê-la. Sem sentir sua chegada, ela abraçou-me pelas costas e sussurrou em meu ouvido algo que eu não consegui entender, mas, realmente como um comando, apenas obedeci e seguimos pela rua, escura, sem ninguém a testemunhar aquele encontro que eu sei ter acontecido.

Já no quarto, fez-me sentar na única cadeira que tinha por lá. Pequena, de madeira, rangia ao menor toque. Eu da mesma forma, era só ela encostar em mim que minha respiração ficava tão ofegante que fazia ouvintes por todo o estabelecimento. Lentamente afastou-se de mim e me fez espectador de sua magia. Despiu-se tão lentamente que eu pensei desfalecer e acordar por diversas vezes. E acho que isso realmente aconteceu. Morri e sobrevivi a todo esse estranhíssimo enlace.

Ainda em vida, com os olhos mal abertos - pesados eu sentia – consegui vê-la nua. Esta é uma imagem que, definitivamente, não consigo rememorar. É como se fosse um suspiro, um momento fugaz, não há maneira de voltar a esta memória. Mas eu sei o que senti. E foi por isso que desfaleci novamente. Acho que é como uma divindade, tão complexa que minhas simplórias sensações não conseguiram dar conta de tamanha energia.

Voltei de algum lugar que nem eu sei onde e me vi só, sentado na rangente cadeira, a porta do quarto completamente escancarada e nenhum indício de que eu estava acompanhado. Apenas o pesar em meu peito dando-me a certeza de que foi um momento único.

Sem rastros, sem notícia, lembrei-me daquela rua em que a vi pela primeira vez e ela captou minha vontade instantaneamente. Por isso continuo a esperá-la e espreita-la por dentro do carro. Hoje penso como foi duvidosa sua intenção ao se aproximar de mim. Mas, qual a real importância disso? Ela veio até mim! E de mim nunca mais saiu mesmo que não tenha certeza de que algo tenha acontecido entre nós, na verdade não sei o nome dela, apenas a sinto, a leio ainda que seja completamente analfabeto.

Sheila Liz
Enviado por Sheila Liz em 31/12/2018
Reeditado em 31/12/2018
Código do texto: T6539562
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