A CHAVE MÁGICA

Numa noite dessas, lembrei, de repente, de minha avó e do tempo em que ela me fazia tomar um fortificante chamado Emulsão Scott. Nessa época, eu devia ter por volta de quatro ou cinco anos e morava com ela. O tal remédio tinha um gosto nada agradável e, na verdade, eu tinha até medo de ingeri-lo. É isso mesmo, medo. Afinal, pensem num remédio feito de óleo, mas óleo de fígado. Isso já parece ruim. Agora imaginem que seja óleo de fígado de Bacalhau. É, Bacalhau, aquele peixe com cheiro característico. Era disso que era feito o remédio. Vó Magdalena, então, com aquela paciência de sempre, no momento de me dar o fortificante, trazia na mão uma velha chave, daquelas grandes, de ferro, que se usava para trancar as portas da casa. Na hora certa, ela mandava que eu segurasse a chave e dizia que, se eu estivesse com aquele instrumento na mão e o apertasse com força, estaria seguro e pronto para enfrentar qualquer dificuldade. Essa foi a única saída encontrada por minha amada avó para que eu, apesar de todos os temores, pudesse me precaver contra as possíveis enfermidades que costumam atacar crianças – como eu, na época – e debilitá-las. “Tomando a Emulsão Scott, tu vai crescer sadio e robusto”, dizia ela. Quem me conhece deve agora estar rolando em gargalhadas do segundo adjetivo, mas tudo bem.

À medida que me lembrava saudosamente da Vó Magdalena, vinha-me à mente também a situação atual por que todos nós brasileiros estamos passando. Entra ano, sai ano, e as coisas parecem piorar para a maioria dos cidadãos. Os institutos de pesquisa alardeiam índices alentadores quanto à qualidade de vida da população, mas, de fato, tenho a impressão de que o brasileiro – aquele que levanta cedo para garantir a sobrevivência e paga todos os seus impostos – passa cada vez mais dificuldades. Ter um trabalho que garanta uma vida digna é cada vez mais difícil. Basta ver os índices crescentes da informalidade e a quantidade de famílias que desce para o nível da miséria todo dia. O ensino privado tem seu custo elevado a ponto de apenas uma minoria ter acesso a ele e a rede pública – pobres combatentes sem horizontes os que dela fazem parte – se arrasta pelos caminhos da indigência. As promessas e os projetos perfeitos são muitos, mas a realidade é a que todos conhecem. Os sistemas de saúde públicos caminham rapidamente para um colapso total – se é que já não chegaram lá. A segurança pública, ou seria melhor dizer insegurança, deixa todo mundo em estado de alerta permanente. As tragédias são diárias e só esperamos para saber quando seremos nós, ou um de nossos parentes, a próxima vítima. É aí que aumenta a saudade da minha “avozinha”. Se eu ainda fosse criança, como na época do Óleo de Fígado de Bacalhau, ela poderia me dar aquela chave e eu estaria seguro, pronto para enfrentar qualquer dificuldade. Finalmente, hoje tenho a noção exata de quanta falta faz uma Vó Magdalena com sua chave mágica.

Everton Falcão
Enviado por Everton Falcão em 15/09/2007
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