Pés Descalços

Com os pés descalços, bacia na cabeça e um nascituro ás costas vai correndo pelas vastas ruas desta cidade e atrás dela um capataz de azul que com chicote quer resgatar os valores perdidos... a quer resgatar dos maus caminhos em que a senhora anda; resgatar a senhora da péssima decisão que teve de alimentar seus filhinhos com sacrifícios de uma venda ambulatória que mancha a beleza dessa cidade feia que não lhe dá outras oportunidades

De pés descalços vai o menino à escola, que mesmo com o futuro incerto e escuro, dedica suas manhãs ao ABC para que não seja sua a culpa de não ter emprego mais tarde; vai-se munindo de conhecimentos insuficientes para exercer uma profissão, pena que só dará conta disto muito tarde;

Com os pés descalços corre o jovem atrás da bola porque, para o sofrimento, alguma escapatória; não há homem que aguente tanto!

Com os pés descalços vai o homem para as lavras, que a este momento da vida precisam de ser cultivadas para diversificar a ementa diária e porque lhe pesa sobre os ombros a responsabilidade de uma mãe viúva, oito filhos, uma esposa kunanga, sonhos quebrados, direitos violados, país lixado... passa pelas ruelas esburacadas desta cidade que por sinal também precisa de ser resgatada de seus defeitos, e alguns até crónicos, trânsito infernal, poluição mental, gente sem moral, crianças de rua, mendigos a nu, antigos combatentes sem paradeiro, choros sem resposta, lamentações agudas, estrilhos gudas... que o Deus dos brancos nos acuda, porque o nosso SUKU já não houve nossas preces em umbundu e não entende português.

Com a mente descalça, passa o chefão que também precisa de ser resgatado do seu mau feitio, da sua mania de grandezas, das suas doenças especiais, dos seus hábitos de sobrepor-se aos demais mortais, do peculato e da impunidade e do nepotismo, hábitos próprios dos de barriga acentuada; que precisa de ser resgatado da cegueira de não sentir pelo outro, de não devolver a cada um o que lhe é devido... de pensar que é eterno;

Precisamos também de resgatar o agente desorientado, o cristão perdido, o professor incapaz, o dirigente incompetente, a profecia falsa, o funcionário ocioso, o saneamento básico, a saúde pública, a escolaridade obrigatória, a educação jurídica, a água, a luz, a fé dos homens, o salário baixo, os dólares americanos, a credibilidade das instituições e calçá-los com os melhores sapatos, para que andem e façam uma boa viagem.

M Kanambi