PERDENDO A CABEÇA

Ser rotulado de corno sempre provocou imenso constrangimento a muitos, em boa parte das sociedades conhecidas. Sobretudo, nos primórdios da França, do século 18. Pois foi o que se abateu sobre Jacques Wallace, um humilde lenhador, diante da descoberta do par de chifres plantado pela bela e jovem esposa, no topo de sua cabeça. Jacques não teve dúvida e executou Juliette.

Não compartilharia a amada com quem quer que fosse, por nada nesta vida. Fora às vias de fato, e não demorou a ter com a lei vigente no povoado onde morava. A justiça se fez ligeira, e assim foi preso, julgado e condenado à morte pelo aço da guilhotina.

Sua última frase foi: “Se mil cabeças tivesse, todas daria pela minha honra devassada!” O discurso, frente à multidão foi breve, e logo cortado pelo sibilante zunido dos cerca de quarenta quilos da lâmina diagonal.

Coube ao próprio algoz destinar o executado numa cova do cemitério local. René, o carrasco, era frio e sua lista de execuções vasta. Missão cumprida!!! Mais um para arder nos quintos dos infernos, disse impiedoso. Cuspiu sobre a terra da cova e rumou para La Taverne, local onde afogava-se no vinho de todas as tardes. Bebeu até cair e se arrastou de volta ao casebre onde morava com a mãe. Apagou na cama bodeado.

O porre fez o mundo de René girar, e sua boca colava de sede. Nisso, seu braço elevou-se e tocou desajeitado na tina d’água derrubando-a no chão, aos cacos.

— Demônios! — praguejou.

— Não perca a cabeça, René!!!!

Com olhar embaçado e meio confuso perguntou: — Q-Quem disse isso?!!

— Jacques, quem mais seria? — René pôs-se de pé, tão rápido quanto um raio.

Abaixo, no chão do quarto, a cabeça do executado daquela tarde, fitava-o tagarelando irônico e debochado. Desnorteado, olhos arregalados e ainda sonso, René tropeça, cai de costas e desmaia.

— Acorde miserável!!!

— Quê?!!! Sai maldito decapitado!!!

— Xiii!!— Disse a mãe de René — Bebeu como um porco e capotou, quase quebrando o pescoço no chão do quarto.

— No chão do quarto? Nem me fale, mãe! Há pouco me veio a cabeça do decapitado zombeteiro com aquele sorriso e…

— Ah-Ah-Ah! Deu agora pra falar com a cabeça de seus guilhotinados?!!

— Juro que ví, mãe! — e René saiu naquela manhã apavorado, correndo vila adentro e repetindo por todas as bocas a história do descabeçado.

— Bem feito! O infeliz veio cobrar-lhe a cabeça perdida!!! E cuidado pra não perder a sua também, hein? Ah-Ah-Ah! — Provocavam os locais.

O homem estava convicto de que havia mesmo visto a cabeça do condenado.

E tanto, que acabou virando obsessão. Rumou então resoluto para o cemitério com o fito de tirar a coisa a limpo. Lá chegando, aproximou-se da cova de Jacques, e o que viu, disparou seus batimentos. Nos sete palmos do buraco, meio a descoberto, jazia apenas o corpo do pobre diabo. E uma voz falou mais alto…

— Perdeu alguma coisa, Renezinho?!

Foi quando o amalucado algoz se virou e deu de cara com o devassado infeliz no chão, com um sorriso irônico fuzilando-o com todos os olhos. Transcorridos trinta anos, ainda se ouvia contar histórias de que René, o Algoz de Jacques Wallace, ainda corria babando de medo, perseguido pela incansável e debochada cabeça.