AS CARTAS MARCADAS

Era uma vez, há muitos séculos atrás, um mundo de reis, rainhas, damas e valetes numa corte de valores vis. Nobres em títulos e riquezas, em poder e requinte, em educação esmerada e supérfluos mil. Do outro lado, a plebe, faminta e trabalhadora, sem descanso nem direitos, sem chance, nem nobreza, proliferava em ódio e tristeza, num jogo de cartas marcadas.

Chegou um momento em que a história rechaçou a nobreza e, desta forma, a sua linhagem se esvaiu. Os transportes surgiram, alcançaram outras paragens e terras foram demarcadas pelos novos senhores de posses, viajantes e mercadores. Assim sendo, a riqueza dos nobres foi sendo lapidada sem sobrar sequer os talheres de prata. Foram os comerciantes, a burguesia sagaz que se aproveitou e roubou, vendeu tudo que podia e construiu cofres, bancos, patrimônios e até castelos abarrotados de moedas que a nobreza tinha. Do outro lado, a plebe, mais desafogada, tomou coragem e foi às ruas, pouco à pouco se aglomerando, se associando, apoiados por modernistas e libertadores, invocando novas leis e, apesar de ainda pobre e sofrida, vestiu a fantasia e vislumbrou a chance de entrar um dia no jogo de cartas.

O jogo realmente havia mudado. O “Às” passou a ser a carta mais importante do baralho. O Ás de sagAZ que tudo sabe do começo ao fim. Junto ao coringa, amigo malandro que tudo cobre e nada vale, eram as cartas marcadas, as cartas da vez.

O tempo passou e esse jogo ainda parece não ter chegado ao fim. Vez por outra é necessário até dar uma pausa para a “paciência”, pois critério, regras ou a escolha de quem senta à mesa, é só de quem dá as cartas, aquele que herdou o direito à jogada,

Só não vê quem não quer. São cartas escondidas nas mangas, tem aquelas marcadas, outras são cruzadas, esse jogo não acaba, pois os vencedores sempre começam à cada nova jogada. Ficam de fora aquela pessoa que não pode apostar, quem não sabe jogar, ou não foi convidada. Pouco importa se é um gênio, um matemático, um estudioso ou um dedicado aprendiz, não entra. Não joga. Por isso, a plebe continua frustrada.

Não se iludam, ainda vivemos o ranço de séculos passados, de poder, de arrogância, de injustiças, de reinados ociosos e folgados que se comprazem em retirar à força o que podem dos menos favorecidos, desde orgulho, dignidade, decência, até trabalho. Nas mesas, nas salas, nos apartamentos e escritórios luxuosos, uma High Society desfila, ociosa, seus babados, como os nobres faziam, e enxergam o povo somente pela fresta da cozinha ou nos postos mais insignificantes de suas companhias. Essa mesma sociedade traz para seu território apenas a sua corte, seus comparsas, seus similares, seus afins. Mesmo que sem títulos, terão ao seu lado apresentáveis figuras ostentando a superficialidade de que aos nobres se assemelham e os inspiram.

Anos, décadas, séculos se passaram. A tecnologia das máquinas à científica e a da informática, evoluíram. Máquinas, nuvens, satélites… mas não andamos nem um passo à frente na evolução da humanidade, na transmutação dos erros e ascensão à uma inteligência soberana em riquezas que não podem ser roubadas. Continuamos na superfície de uma mesa apenas jogando cartas marcadas.

Kawer
Enviado por Kawer em 11/01/2019
Reeditado em 11/01/2019
Código do texto: T6548259
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