O voo da memória

A memória é uma companheira antiga, em realidade, minha amante e senhora. Às vezes, carrasco e juíza, outras, uma brincalhona como poucos.

Nos momentos em que me encontro comigo mesmo, é ela que fica batendo na janela disfarçada de passarinho. Habilidosa, destrava os ferros da esquadria e empurra as duas abas de vidro. O vento entra impetuoso e desavergonhado levantando as cortinas. A paisagem está desnudada e ela agora é uma águia avançando pela sala. Estou sob suas asas. Não posso lutar contra uma hárpia! Também não quero! Não quero querer. Ela pôs seus pés sobre os meus ombros por trás de mim. Uma massagem dolorosa e necessária. Suas garras furam minhas escápulas. Minhas clavículas parecem se quebrar. Curvo-me e ela, soberana, bate as asas gigantescas sobre mim.

Tapa meus olhos e ouvidos e narinas. Não sinto mais dores. Se o tormento insiste em aparecer, eu finjo que é prazer o prazer que deveras sinto. Num momento de abrir e fechar de asas, eu apanho a caneta e começo a escrever. A tinta falha. Arranco uma pena sem pena da minha amiga algoz. Ela é implacável. Altiva, porém piedosa, lança um olhar poderoso e enebriante. Agora ela está diante de mim e me olha nos olhos. Duas pontes íris a íris trazem do sempre o público e o privado até nós. Levam de nós não sei para onde e nem até quando. Continuo a escrever.

Ela se acalma e se fragmenta em delicadas borboletas. Saem por aí de flor em flor, pousando nos cabelos das meninas, nos ombros dos rapazes, espalhando vida até descansarem presas entre as páginas dum livro.

Niterói, 17 de janeiro de 2019

Durante o Corujão da Poesia no Reserva Cultural

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 22/01/2019
Reeditado em 22/01/2019
Código do texto: T6557057
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