Cativas

Texto presente no livro "APENAS MAIS UM

LIVRO DE AMOR" da Editora Jogo de Palavras.

CATIVAS

Minha avó relutava! Não ignorava que deveria deixar o cativeiro, e o momento de despojar-se de seu velho corpo havia chegado. Porém, o amor a segurava. O amor de seus filhos e dos filhos de seus filhos, desde o mais velho até o de mais tenra idade. Laços fortes, laços de amor.

Tanto tempo se passou e eu ainda recordo exatamente o momento de sua partida. Raras vezes fiquei tão emocionada em toda vida.

Turvo se fazia aquele dia, até chovia, e lá estava eu, ao seu lado, com uma de suas mãos entre as minhas. E quando não havia mais possibilidades de permanência, eu assisti a um brilho de missão cumprida em seu último e mais profundo olhar. Foi como se com aquela luminosidade toda, ela estivesse me dizendo:

— Agora não posso mais adiar! Chegou minha hora, Izabel. Cumpri o meu destino. Parto para uma nova etapa. Até um dia!

Em pouco tempo espalhava-se a notícia que ninguém desejava ouvir.

Apesar de triste pela separação, eu recordava os ensinamentos que vovó me transmitiu por toda a nossa coexistência. Aprendi que essa lamentada partida pode ser o maior dos galardões. O prenúncio de uma cura, a iminência de uma vida futura. Com sua convivência aprendi a não encarar a vida ou a morte como um túnel escuro.

E as orações se multiplicavam.

Avistei minha mãe em prantos. Porém, o amor a consolava. O amor de seus filhos e de seus netos. Ainda havia muitos motivos para continuar.

E eis que o sol voltou a raiar no amanhecer seguinte. Uma nova aurora surgia, e ao checar o exame feito, constatei o que já imaginava, eu estava grávida. O célere tempo logo trouxe minhas filhas: sim, eram gêmeas. Em período tão curto fiquei maravilhada com as nuances de nossa existência. Enquanto uma pessoa há pouco ganhava a liberdade, novas cativas soluçavam aqui pela primeira vez. Pensando nisto tudo,

os nomes escolhidos para minhas pequenas foram Maravilha e

Aurora. O tempo delas começava a ser contado.

Refleti sobre como esse tempo passa ligeiro. Lembrei-me ainda mais disso quando chegou o momento de minha mãe ganhar a alforria. Assim como minha avó, ela também esgotou seus dias terrenos após ter vencido grandes obstáculos impostos ao longo dos anos de expiação. E o brilho no olhar também marcou a sua mudança de estágio. Despojou-se do corpo, mas levou consigo o carinho de meu beijo.

Sofri! Contudo, o amor de meus descendentes, assim como aconteceu antes, foi o que me ajudou a prosseguir e a suportar tanta saudade.

Ah! Minha avó, minha mãe e também minhas tias, sempre foram fortes, guerreiras e preparadas: as mulheres de minha família.

Não posso dizer que seja mera coincidência eu estar relembrando, ou melhor, revivendo tudo isso neste instante. Bem agora, momento em que penetro no fundo do olhar de minha neta ao meu lado. No reflexo de seus olhos, vejo meus olhos brilharem.

Márcio Fernando
Enviado por Márcio Fernando em 29/01/2019
Reeditado em 29/01/2019
Código do texto: T6562321
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