UMA VIDA AMARGA

“O estado de espírito de negação precede frequentemente a ocasião de negar. Antes que tenhas falado, se me és antipático, a minha negação está pronta, digas o que disseres- pois é a ti que eu nego” (Paulo Dantas)

Alguém que durante toda a sua vida fosse sistematicamente rejeitado, apesar de não mostrar aparentemente traços morais negativos de maior relevância, torna-se deveras intrigante. A propósito, nosso anti-herói era um representante clássico de setores médios da sociedade. Bancário, bacharel em direito e proprietário rural. Enfim, com níveis de conhecimento e situação financeira acima da maioria.

Estudioso da condição humana, simpatizante da esquerda, mas sem radicalismo. No trabalho e também nos círculos sociais, jamais ocupou posições de liderança. Não era carismático, não apresentando beleza física, as suas opiniões de modo geral, não coincidia com o pensamento da maioria das pessoas. Porém, indivíduo honesto e cumpridor das suas obrigações para com o próximo.

Todavia, no seio de sua família foi sempre rejeitado: pelos filhos, esposa e posteriormente, pela mulher do segundo casamento e também pelos colegas de trabalho. Ao contrário do esperado, tudo fazia para ser aceito, pois ajudou financeiramente familiares, colegas e empregados. Não medindo esforços para atender de forma integral todas as pessoas de sua relação. No entanto, nunca foi muito seletivo na escolha das pessoas, as quais veio relacionar durante a vida. Após alguns anos de casado, a esposa exigiu separação matrimonial, os filhos seguiram a mãe e o abandonaram.

Então, passou a morar com sua mãe e mais um irmão deficiente na casa de seus pais. Nesse período, desenvolveu um melanoma maligno na pele. Mesmo sabendo do prognóstico sombrio de sua doença, não se abalou, sendo submetido a cirurgia para remoção do tumor e milagrosamente foi curado da malignidade.

Posteriormente, sua mãe veio a falecer, antes disso, ela recomendou a ele a guarda de seu irmão doente. Tal situação protelou por muitos anos a sua segunda união conjugal. Nesse ínterim, conviviam os dois harmonicamente, jamais deixou o companheiro sozinho. Lembro-me de quando ia visita-los percebia o carinho que o tratava: fazendo seu prato na hora das refeições e a barba diariamente..! Alguns anos após, seu mano também veio a falecer.

Aí, ele assumiu a sua nova companheira, que infelizmente interessou-se exclusivamente pela condição financeira proporcionada por ele. Desgostoso com o erro cometido, sua saúde foi declinando, culminando em um acidente vascular cerebral. Os empregados da fazenda, que no primeiro momento se solidarizaram com ele, também, acabaram-se distanciando.

Vive hoje na casa da segunda esposa: não anda, não fala: aguarda pacientemente o coração parar de bater. Ignorado por todos, amarga um final de vida deprimente. Por fim, atribuir tão somente a rejeição sofrida por ele, tendo como base a condição moral das pessoas de sua convivência, não explicaria toda essa negação. Alguma coisa perceptível apenas pelos indivíduos de seu contato diário estaria também associada a toda essa provação..!

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 29/01/2019
Reeditado em 09/02/2019
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