A Semente e a Montanha

O deserto era especial. Não aquele de dunas desenhadas pelo vento, mas um cheio de pedra, numa mistura de areia, e pedaços de rocha. 

 Começava após a montanha rochosa, onde o homem só passava à (pé) para não escorregar na ladeira da estrada, e se precipitar para o imenso abismo do penhasco com pedras pontiagudas que pareciam esperar, para lhe desfechar golpes de morte. 

 A montanha já por si era íngreme, obrigava a semente a subir fechada na cápsula, respeitando a caminhada que o iluminado indicava-lhe, como se fosse o senhor capitão da verdade dos céus, ameaçando-a com os perigos e armadilhas, que a montanha por ventura escondia. 

 A semente subia ainda esperançosa, sem nunca ter sido regada, sempre seca, pois, teria de cumprir a promessa de desabrochar quando Deus assim entendesse. 

 Na subida, ela havia sido intimada a cumprir o seu destino… deu-lhe água sebenta que lhe dava nojo, não sabia mesmo como circular a seiva da vida que aliás, nem sequer imaginava bem o que era… Perdeu a noção do tempo que levou para chegar ao cume, e começar a descida. 

 Dentro da cápsula, que continuava inexorável a sua subida até o topo da montanha, ela não tinha janelas, recebia apenas ordens diárias sobre o que fazer… 

 Houve momentos em que pensou ser esse o seu destino… Até que um dia a caixa se paralisou subitamente...Um solavanco forte obrigou-a parar, viu que abrira uma fenda em um dos cantos. A semente forçou até aquela luz, percebeu que a fenda se abria facilmente, se sentiu incrivelmente tentada a ver tudo aquilo lá fora!… Quando conseguiu emergir, pôs a cabeça fora da cápsula… e viu o mundo! 

 Percebeu que deixara tudo para trás, tinha sido mesmo obrigada a separar-se das raízes, mas aquele momento de olhar o mundo de cima da montanha era tentador! 

 Não lhe deram escolha… tinha ainda que descer aquele penhasco sozinha… para enfrentar o deserto. Foi descendo lentamente… já fora da cápsula, a semente se sentia inchar agora de uma forma diferente, daquela que tinha acontecido com as raízes… e sentiu necessidade de criar uma nova cápsula, para se resguardar do frio da montanha e do calor do deserto que se aproximava… 

 Desceu a montanha sem nunca ter deixado de inchar… sentia que o tempo da sua transformação estava próximo, mas precisava ainda de acabar de descer aquela montanha, tinha ainda que terminar de construir a nova cápsula… Quando ficou completamente coberta já no meio das areias do deserto, ora cálidas, ora estupidamente geladas. 

 Numa dessas noites decidiu parar e esperar um pouco… tinha de agüentar o início da sua transformação até que um pingo de chuva lhe pudesse dar o alimento necessário e força suficiente para nascimento… 

 Ainda hoje não sabe… se fora da cápsula caiu apenas um pingo de chuva, ou foi um dilúvio… tampouco se preocupava… era o momento de parar, cavar um pouquinho a areia ainda quente, e úmida… e a semente se transformou em árvore! 

 Quando desabrochou pela primeira vez… assustou-se, mas não deixou de construir uma proteção à sua volta… afinal estava tão habituada a viver dentro da cápsula, sentia algum desconforto, ficar assim toda exposta, sem qualquer proteção era um pouco assustador. 

 Ela sabia que construíra algo frágil porque, a final ela tinha as suas raízes fixada à terra num abraço que se entrelaçava a outra fixando-a na montanha… não era totalmente livre para caminhar… 

 Queria tanto a liberdade, precisava de sombra, água, e de viver… mas estava presa à terra no meio do deserto… Ainda hoje se lembra que já estava desesperada, quando viu aproximar ao longe um passageiro… Enquanto ele avançava na sua direção, ela ficava sem saber se abria as raízes, ou aumentava as barreiras para proteger-se… Resolveu esperar… O passageiro chegou… Ela não sabe como… Passado algumas horas após andar em redor dela e das raízes, ele conseguiu entrar… e deparou com ela chorando afinal nada mais lhe restava, teria que arriscar, talvez ele pudesse ao menos deixar-lhe cair uma gota do suor, que o deserto provocou-lhe... e dar-lhe mais alimento para viver… A árvore cresceu e cresceu... Todos os dias falava com o passageiro… Falavam sobre o mundo, o deserto, as cidades, florestas até do além… as vezes o passageiro encostava a sua cabeça na árvore, ela sentia-se mais importante e forte, para enfrentar o mundo. Foi feliz… Todavia nunca deixou de se sentir presa à terra. Era como se a sua felicidade dependesse dela. Sabia que teria de manter a sua ligação à terra. Pouco e pouco foi entendendo que essa sua prisão, era também a sua liberdade, porque era a função que lhe permitia viver… e florescer, para uma nova semente nascer!

Pérola Guimarães
Enviado por Pérola Guimarães em 01/02/2019
Reeditado em 28/04/2019
Código do texto: T6564783
Classificação de conteúdo: seguro