MEU MAIOR INIMIGO

Ele sabe tudo de mim. Conhece cada poro da minha alma, como a palma da sua mão. Sabe onde escondo meus truques, engôdos e alarmes falsos. Poderia descrever o estado de cada órgão do meu corpo, minhas alternâncias de humor, onde falho na largada ou chegada. Sabe onde fraquejam meus sonhos e cada grito que ameacei dar e me calei. Conhece minhas frustrações, uma atrás da outra. Sabe dos meus crimes, todos eles, começando por roubar bala no mercado. Sabendo de tudo isso, faz uso das informações com certa dose de crueldade, de sadismo até. Adora manipular meus sentimentos, fazendo deles o que bem entender. Vendo-me assim, cativo, desarmado, à sua mercê, delira de prazer. É meu feitor, meu capitão do mato, meu soldado nazista de eterna prontidão. Não tenho saída senão acatar suas ordens, por mais sórdidas e absurdas que sejam. Nunca dará alforria, porque adora esse vínculo de opressão, de doentia prisão perpétua. Já tentei derrotá-lo várias vezes. Armei ciladas, dissimulei golpes, busquei juntar desafetos para formarmos um exército de opositores, em vão. Parece que sentia o motim, antevendo nossas investidas e respondendo com artilharia pesada. Esse inimigo vil, de desenfreada ânsia detonadora, sou eu mesmo. E não pense que com você a orquestra executa outra partitura. Não se julgue menos vulnerável, pois dentro de você repousa seu maior adversário, aquele que sabe tintim-por-tintim quem você é, o que pensa, o que esconde no coração. Mesmo que suponha que ele nunca se manifestou, pasme: todos seus escorregões, pisadas na bola e erros de percurso foram causados por essa nefasta criatura que vive dentro de você. Achar que é o governo, o vizinho, o cônjuge, o patrão, o filho, o professor, o cliente, o diabo, o que for, é papo furado. Somos os únicos autores e responsáveis da nossa performance. Somos os únicos que merecemos condenação ou aplausos efusivos por aquilo que nos acontece. Somos os únicos que temos outorgado o direito de ir por aqui por ali. Por fazer isso ou aquilo. Ninguém mais. Quando apontamos um dedo querendo jogar a culpa no outro, três dedos são apontados pra gente. O que fomos, somos e seremos é mérito nosso, só nosso. Esse crédito é intransferível, inegociável, infajutável. Pior aqueles que culpam Deus pelas coisas que lhes acontecem, como se Deus não tivesse nada melhor a fazer do que queimar o nosso bolo, nos fazer errar o caminho ou manchar a nossa calça com tinta. Quando assumimos plenamente o que depende diretamente da gente, tudo fica menos nebuloso, menos volátil, menos mundo da fantasia. É no mundo real que nossas vitórias florescem, que nossos frutos dão seu melhor gosto e que a vida reflete sua mais linda, plena e gostosa face.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 02/02/2019
Reeditado em 29/12/2020
Código do texto: T6565558
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