Com licença

Hoje é um dia muito especial, tanto para você quanto para mim. Não lhe conheço e nem mesmo sei onde você mora. Não sei qual é o estado civil, nem mesmo qual a idade. Será que é de cor clara ou de cor morena? Jamais pensei se possui um automóvel do ano, de marca, se veste roupas de marca ou se reside em palácios ou humildes casebres. Poderá ser de pouca idade ou de idade amena. Não sei, nem mesmo sei do estilo de vida.

Ontem eu lhe vi caminhando pelo jardim da igreja. Vi que se vestia bem. Estava acompanhada do namorado ou marido. Passei perto e nem sequer me reconheceu. Tentei lhe dizer um bom dia, porém fingiu não escutar. São as coisas do destino, porém compreendo perfeitamente.

Com um pouco mais de intimidade, vi com se vestia. Tive a oportunidade de entrar no quarto e ver como se veste bem. Hoje, vi quando se vestiu uma linda calça jeans, calçou meias finas e um lindo par de sapatos. Estava, portanto, desejosa para vestir aquela blusa decotada, de cor vermelha. Talvez um corpete da cor da pele, que combinará com a roupa. Vi, também, quando o esposo ou o namorado se vestiu. Não vou relatar, mas da mesma maneira em que ele veste, você saberá melhor dizer.

Talvez eu seja invisível, mas presenciei o banho, o lindo abraço do casal, a carícia dos filhos, a mesa farta de alimentos, enfim, pude entrar por completo em sua vida e jamais olhou para meu lado. Fiz até algumas carícias no rosto. Somente não lhe acordei do sono profundo para não lhe perturbar e nem mesmo detalharei a vida íntima do casal.

Peguei carona e tentei dirigir o lindo ou o velho automóvel. Não pude, porque estava com a habilitação vencida. Fiz o guarda de trânsito lhe parar e fazer-lhe uma multa. Você ia dizer nome feio, porém não deixei.

Fui ao supermercado, fiz compras, dei palpite de alimentos e até um pedaço da pizza eu cheguei a comer. Sem autorização.

Talvez pensa quem sou eu. Não me conhece e nem mesmo consegue ouvir a minha voz. Sou mudo para você. O seu mundo é meu. Eu é que lhe dou as coordenadas da vida. Faço você molhar de amor nas espumas do sabão, faço com que fique doente e tenha a cura por meio de um médico recém-formado, enfim, sou a sua razão de viver.

Não quero lhe trair, mas poderei fazer você trair o seu marido e também fazer com que ele lhe traia. Posso fazer de tudo, porque jamais me conhecerá, nem mesmo ficará sabendo quem eu sou.

Um espião discreto. Não tenho aparelhos modernos para executar minha espionagem. Vejo-lhe e seu marido de qualquer lado. Sou o guarda costa dos momentos. Faço o que quero e vocês jamais sabem.

Então, com mais segurança, vou-me apresentar nesta linda noite. Exijo que faça um jantar à luz de velas. Vistam o casal e filhos com as mais lindas e belas roupas. Preparem o melhor de todos os jantares. Chegarei às vinte horas. Não sei atrasar, mas preciso de muita energia elétrica para uma boa iluminação. Vou levar uma caneta, algumas folhas, um lápis, um pequeno dicionário e também uma borracha. Levarei Machado de Assis. Ele poderá e me dará alguma ideia de que maneira apresentarei, talvez desta forma:

- Ao cair da tarde, em uma linda casa rodeada de flores, rosas, lírios, margaridas. Um chafariz escorrendo uma pequena bica de água bem brilhante, irradiando felicidade. Não deu certo, o Machado de Assis não funcionou. Está difícil. Não sei que levo Malba Tahan, José de Alencar, Monteiro Lobato, a Cecília para declamar lindos poemas, não sei. Estou com vergonha e não gosto de me apresentar.

Não funcionou e nem mesmo sei como me apresentar. Vou cancelar tudo e voltar à estaca zero. Talvez vocês nunca poderão me conhecer. Com licença, vou entrar mais uma vez na vida de vocês. Vou deletar tudo e a pouco tempo vocês não mais existirão. Sou, antes de me apresentar, os seus criadores. Sou o escritor que dá vida aos personagens. Que os vê ali, que faz o que quiser. Então, com muita licença, porque a qualquer momento entrarei novamente em suas vidas.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 03/02/2019
Código do texto: T6566381
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