Oportunidades perdidas

Eu sempre sentava no mesmo banco, no da frente perto do motorista, e ela no de trás. Um dia meu banco fora ocupado e decidi sentar num banco para duas pessoas, perto da porta. Aí, num mister de surpresa, ela sentou-se do meu lado, apesar do seu banco desocupado. Então, pensei, é agora.

Já havia pensado e olhado muito ela nas últimas semanas, e era retribuído às vezes com um sorrisinho fraco e tremulo - quando a olhava rapidamente ela desviava o olhar furtivamente (como se estivesse fazendo alguma travessura muito errada).

Lá estava. Sentada ao meu lado e com um livro em mão. Parecia os “clássicos da política”, já havia lido e relido aquele livro, no princípio achei-o enfadonho, mas com o tempo notei o caráter auspicioso da obra.

Pela marcação do livro, o marca-página estava aproximadamente na página 120? 140? Estava lendo Tomas Hobbes. Notando isso vi a oportunidade do momento.

Falei: “Esta lendo Tomas Hobbes? Fiz um seminário sobre esse autor. Leitura interessante".

Vi que ela ficou momentaneamente surpresa/nervosa, e parecia que tinha se arrependido de ter sentado ali – ao meu lado; só parecia, claro. Conforme conversávamos o nervosismo cedera para um estilo muito natural.

Dissera que não, estava lendo Rousseau – capítulo posterior ao de Hobbes –, e a julgar pela posição da marcação deveria estar iniciando a leitura. Continuou a discorrer acerca da apresentação escolar, e a posterior avaliação do assunto. Falara também do professor carrancudo que não aceitava trabalho com menos de 50 linhas - mesmo se déssemos um giro de 360º na escrita para tão somente encher linguiça.

Um velhinho acabara de sair do banco que causalmente apossara. Tinha uma muleta e andava vagarosamente. Uma das passageiras falara ao motorista para que esperasse o "Senhorzinho" fazer o trajeto. Olhamo-nos pacientemente, enquanto alguns sentiam o frenético ímpeto de empurrá-lo fora do ônibus – demostrado na impaciência nas mãos, e no rosto de nunca-mais-saio-daqui.

Falei sobre o que pensara de Rousseau, como havia lido a biografia do autor e seu pensamento, comentei sobre a “contradição” entre seu estilo de vida e o que defendeu quando publicara a sua principal obra - Do contrato social.

O ponto de descida estava chegando, dois para ela, e três para mim. Queria estender aquilo, mas como? Decidi deixar um tópico aberto para que pensássemos (como foi à apresentação), e nosso próximo encontro fosse uma continuação aprazível.

Contara a ela que eu era um índio urbano; a rede social um mundo virtual abominável - usara apenas o facebook para emergência. Supriu, felizmente, as primeiras necessidades.

Assim terminara o primeiro encontro, provavelmente...

Tudo mentira. Mentirinha.

Termina assim o dia que eu gostaria de acontecer; que a garota, e todo aquele cenário, saísse do plano da imaginação e se materializasse ao meu lado - na extremidade oposta; que houvesse a corporificação dum fausto Déjà Vu, uma repetição de tudo que pensara - residindo somente em frente ao seu banco. Aquela, na posição taciturna, floria meus pensamentos e me entretinha na sua plácida posição.

Descera o velhinho que tivera sentado no banco reservado aos idosos e, adjacente à porta, ela preparava para descer.