NO MEIO RURAL

Em uma época em um determinado lugar, para aqueles que habitavam no meio rural, havia o privilégio de gozar dos benefícios oferecidos pela natureza, presentes

constantemente em sua rotina. Um ambiente que podia variar de hostil a agradável, onde se iniciava a labuta bem cedinho. Na madrugada, despertado pelos cantos do galo e da corubamba (um pássaro da região que enfatiza seu canto no início da manhã) o homem se ergue da cama, acende a lamparina, liga o rádio de pilha em uma estação sertaneja e ouve moda de viola, o som rasgado da sanfona e a hora certa de minuto em minuto. Enquanto ele lava o rosto na bica de água fria, a mulher atiça o fogo no fogão de lenha, côa o café forte, fatia a broa de fubá moído em moinho movido a água e esquenta o leite para primeira refeição do marido. Em seguida, ele se veste de um traje em remendos, calça a botina de couro já ressecado pelo tempo de uso e sai ao encontro do pangaré no cercado em frente à casa, para lhe colocar o arreio . Quando as últimas providências são tomadas para partida, a lua ainda clareia o vasto vale. Ele se despede da esposa lhe desejando um bom dia, faz cócegas no menino que já acordou, mas ainda continua na cama. Já montado no trotão, se benze protegendo-se dos males que possam atingi-lo durante jornada (maribondos, cobras, ouriços, enxame de abelha, taturanas, o tombo do cavalo ao passar pelas ladeiras escorregadias, a queda na travessia do rio pela pinguela em época de cheias) e segue em direção às pastagens cobertas de geadas, a procura das holandesas de ubres fartos, providenciando a primeira ordenha do dia. Ao leste surgem os primeiros raios do sol descobrindo as lindas montanhas verdes e envermelhando as pequenas nuvens formadas por aviões destinados aos aeroportos das grandes cidades. No ar percebe-se os cheiros difundidos da terra molhada, da mata virgem e do curral que já se encontra tomado pelo gado leiteiro. Ouve-se o canto da

passarinhada e em destaque o da seriema. E, ainda mais tarde, o gemido do carro de bois na cava da ladeira. Neste momento, os tonéis repletos de leite in natura aguardam o caminhão para transportá-los até a fábrica de laticínios na cidade. A poeira que sufoca a meninada a caminho da escola é provocada pelo pau velho fretado e pela caminhoneta do patrão que vem zoando ao longo da estrada de chão batido, construída estrategicamente distante do rio vermelho (cor causada pela terra lavada da mineração).

Na residência do homem, um casebre às margens do rio, a mulher, dona de casa, se atenta com as obrigações da manhã, após a chegada do sol. Passa pelo chiqueiro e dá comida ao capado. Vai até a horta, molha a plantação, colhe tomate, jiló e quiabo. Na cozinha, coloca mais lenha no fogão para cozinhar o feijão, cuidando não atrasar o almoço do marido e das crianças que chegam

famintas da escola na cidade. A jovem que encerrou uma fase dos estudos e aguarda a definição do pai para continuar em uma nova etapa, ajuda a mãe na lida doméstica. Lava as panelas (separando a lavagem para os cachorros) e faz limpeza na casa. Os afazeres do homem rural são diversos ao longo do dia. Por todos os cantos da fazenda as equipes se dividem para execução das suas tarefas. No roçado das pastagens, no reforço das cercas de arame farpado e mourão de candeia, na alimentação dos suínos e limpezas dos chiqueiros, na capina do milho, da cana e da lavoura em geral, na limpeza do açude, na colheita do café ou do algodão e na ordenha das malhadas, o trabalhador se ocupa providenciando a sua estabilidade e a de seu patrão. No finalzinho da tarde o homem retorna ao seu lar para um descanso merecido, após missão cumprida. Há outros que retornaram mais cedo quando findada a tarefa marcada na lavoura, no roçado ou no alambique. Nesta mesma tarde que se foi, a garota acompanhou a mãe até a bica próxima ao riacho onde suas vizinhas as encontraram para lavar roupas e botarem as conversas em dia. Ouviram músicas de Roberto Carlos, Amado Batista e Júlio Iglesias. Ali perto, num gramado debaixo de uma árvore, as meninas brincaram com suas bonecas de sabugos. Os meninos estavam pelos rios nadando ou procurando ninhos de sabiás de peitos laranja nos barrancos (excetos nos dias de enchentes, quando as águas do rio invadem os tabuleiros nas várzeas, trazendo lambaris e piabas os quais eles capturam com suas próprias mãos). Entre as atividades que eles usam como entretenimento, se destacam a corrida em perseguição às seriemas com os cachorros, o jogo de futebol no areal do leito do rio e de bola de gude no terreiro, tomar leite retirado diretamente das tetas da vaca para caneca de alumínio, atirar pedra em casa de maribondos, retirar cocos nos coqueiros altos, cujas folhas secas, o “corococó”, foram usadas para se deslizarem pela ladeira até ao brejo. A tarefa diária e árdua, porém indispensável, era manter a frequência na escola. No retorno para suas residências, os garotos caminhavam durante oitenta minutos por uma estrada de terra, sobre o sol do início da tarde, após o término as aulas na única escola do município. Na metade da jornada, o cansaço e a fome começavam a incomodar. Mas, como para cada problema encontramos uma solução, para esta situação não se deu de outra forma. Saciavam sua sede na fonte de água em abundância e enganavam o estômago com frutas de plantas nativas dos campos da região. Pela manhã, a caminhada ora sobre nevoeiro, ora sobre geada, ora sobre chuva, não era menos desafiadora.

Em dias marcados, as mulheres se programam e vão às matas virgens catar gravetos para acender o fogo no fogão pela madrugada. Na época do plantio da lavoura ou mesmo na colheita, elas estão sempre presentes com os maridos nas roças. Às vezes vão à cidade. Vão ao mercado fazer as compras mensais, às reuniões bimestrais da escola dos filhos ou em caso de doença e prevenção vão ao posto de saúde. Em épocas de eleições vão com os maridos cumprirem seu dever de eleitoras – desconfiam das promessas dos candidatos que lhes oferecem transportes gratuitos para irem votar e uma refeição reforçada nos fundos de suas residências na cidade. É a boca de urna. E, ainda, aos domingos pela manhã vão assistir à missa das oito horas.

No vilarejo é onde fica o ponto de encontro as quartas e sextas-feiras para a pelada. Num campinho parcialmente gramado e em desnível, com traves de tora de eucalipto e travessão de bambu, a pelota rola. Ao lado, um barranco de onde aqueles que não jogam apenas assistem. Em frente, um boteco modesto que atende com satisfação a grande maioria da clientela. No cardápio não faltam a cachaça da pura, torresmo, linguiça frita, vinho tinto e doce de amendoim. O treinamento do futebol se faz sem juiz, pois as regras são cumpridas de acordo com a opinião da maioria dos participantes. O choque entre pés descalços e calçados, na prática desse esporte, causa dor e desconforto ao jogador desprevenido que se desmonta no chão duro se lamentando. Á noite ao chegar em casa, com compressa de água morna e sal grosso ele acredita se curar do inchaço. Após a partida e a resenha

terminadas, os peladeiros vão embora se separando em grupos que se desfazem quando cada membro chega em sua residência. Caminhando na trilha iluminada pelo queijo que surge no horizonte, os pernas de pau encontram com o retireiro em seu trotão retornando da fazenda, onde ficou acertando as últimas pendências. Após prosa rápida se despedem, enquanto num brejo próximo, os sapos coaxam, os grilos chiam e os vaga-lumes piscam suas luzes que iguais tais não existem.

As tardes e as noites durante a semana são praticamente iguais, exceto em dias de novenas (a santa padroeira vai de casa em casa reunindo os fiéis em torno de si, onde rezam o terço). Após o terço, o anfitrião oferece prendas para a realização do leilão em prol da festa marcada em homenagem à santa. Os lances são muito disputados até as prendas serem arrematadas. As moças e os rapazes se reúnem para brincadeira de roda (de mãos dadas cantam cantigas típicas que propõem um relacionamento

mais íntimo entre eles, passando a se conhecerem um pouco mais). Aos sábados à noite, às vezes, acontece um arrasta-pé. O Zé traz a sanfona, pede ao compadre para tocar a viola ou o violão e seus filhos, o pandeiro e o zabumba. O som produzido imita aquele que as duplas sertanejas tocam nas rádios. Aos domingos, as mulheres lideram as orações no Cruzeiro, apresentam e vendem seusbordados, pontos de cruz e colchas de retalhos no salão comunitário. Os homens, os meninos e as meninas se dividem no campo de futebol. Neste dia acontece um jogo pelo campeonato municipal e o time não deve perder em casa.

Nas festividades anuais, todos se reúnem com entusiasmo e grandes expectativas. Na festa junina, tudo se transforma. O cenário muda no terreiro do salão. Toras vigiadas na mata durante o ano todo, formam fogueira onde são assadas as batatas-doces. Papéis coloridos transformam-se em bandeirolas e enfeites. Lamparinas e lampiões são colocados em pontos estratégicos. Rojões rasgam os ares com estrondos ensurdecedores e faíscas coloridas. Casais se reencontram após um mês de ensaio para se apresentarem na quadrilha animada. Moradores da região encenam o casamento do jeca, como atores amadores que são. Nas barracas cercadas de bambus e cobertas de capim e folhas de bananeira, vendem-se quentão, canjica, pipoca, batidas, pastéis e outras iguarias. A criançada se diverte com bombinhas e o boi de caiado (figura folclórica) que ameaça a todos com chifradas inofensivas. Dando a continuidade às festas, surge na comunidade um momento tão esperado, o dia da festa de Santa Cruz. O Cruzeiro, que representa o calvário é construído em um local elevado da localidade. No período da festa de Santa Cruz ele se transforma. Para celebração da Santa Missa, ele é enfeitado com arcos de bambus cobertos com ramos de ciprestes colocados na entrada e jarros de flores e bandeirolas de papéis de seda no interior. No pé da cruz, monta-se o altar coberto por uma tenda em forma de arco e tecido com estampa em flores. A decoração é mantida até o final das comemorações.Quando chega a semana santa, a família católica rural se emociona. Durante a quaresma (período de reflexão sobre os momentos difíceis passados por Jesus no deserto), os festeiros distribuem um convite-programa que será seguido por todos, desde o domingo de ramos (quando os homens montados em seus cavalos formam a procissão com folhas de palmeiras nas mãos) até o domingo de páscoa. Na terça-feira vai à igreja na cidade acompanhar a procissão de encontro (o andor da virgem Maria é carregado pelas mulheres e o do Senhor dos Passos pelos homens). Na quinta-feira assiste a cerimônia do Lava-pés. Na sexta-feira da paixão, bem cedo, os meninos vão às fazendas e sítios a procura de leite doado pelos fazendeiros e sitiantes. À noite, a família volta à cidade para ouvir as palavras do pároco no sermão durante o descendimento da cruz. Acompanha a procissão com o senhor morto no caixão ao som fúnebre da banda musical e se “despede” Dele em frente ao altar da igreja matriz. Nesse momento todos fazem o exame de consciência e pedem perdão à Deus pelos seus pecados. No domingo de páscoa comemora-se a Ressurreição de Cristo, a renovação da vida. Após a queima do Judas em uma chácara armada no coreto, todos voltam para seus lares se sentindo com a alma mais purificada, com a felicidade no coração para seguirem a rotina saudável oferecida por Deus.

Na cidadezinha, onde são feitas as compras e vendidos o leite e parte da lavoura, a população rural se reúne mais uma vez para outra festa. É a festa de exposição agropecuária. Durante uma semana as ruas e o parque de exposições concentram um grande número de pessoas. Os carros de passeio, os ônibus e os caminhões ocupam todos os estacionamentos, inclusive os improvisados. Os coordenadores da festa criam um programa apresentação para cada atração. Nas baias os cavalos manga-larga aguardam os seus momentos. Ele émontado pelo pião, que o faz marchar e arrancar aplausos dos presentes. No curral, instaladono parque, acontece o torneio leiteiro, onde a vaca de ubres fartos é ordenhada, impressionando todos pela quantidade de leite retirado e premiada em seguida com o troféu de primeira colocada. Na arena, o pião entra com a imagem de Nossa Senhora

Aparecida, a padroeira, segura pelas suas mãos calejadas. Ele agradece por mais uma noite de apresentação, monta o touro e em seguida o cavalo arisco. Ao narrar o acontecimento, o narrador de rodeios faz o povo pular nas arquibancadas de emoção. No leilão é que o gado bem cuidado é valorizado, pois a recompensa finalmente chega para o criador do rebanho, que dedicou parte do seu tempo precioso para conseguir êxito no evento. Ainda no parque, há um galpão reservado onde são apresentados os produtos artesanais e um espaço aberto para diversões e barraquinhas diversas. O palco é montado na entrada. Nele se apresentam as duplas sertanejas e as bandas da região, assim como os cantores famosos em dias marcados. Enfim, o fim do ano.

No mês de dezembro é chegado o momento de avaliação dos fatos transcorridos. No natal, a mulher

e os filhos montam o presépio no local onde fizeram o altar para recepção da imagem de Nossa Senhora em sua visita. Na noite do dia vinte e quatro, a família se reúne para ceia. Momento de paz e alegria em comemoração à chegada do menino Jesus. No dia trinta e um, ao som de rojões e fogos de artifícios o véio morre e nasce o novo. Um momento de confraternização na comunidade. Todos se saúdam espontaneamente, desejando a ambos prosperidade, paz e um feliz ano novo. E, a paz passa a reinar em todas as casas e cantos da região.

Sílvio Assunção
Enviado por Sílvio Assunção em 11/02/2019
Reeditado em 02/10/2021
Código do texto: T6571980
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