A BOLA DE GUDE

O jogo de bolinha de gude é uma das brincadeiras de rua mais popularizadas em todos os cantos desse Brasilzão a fora. A bolinha traz consigo várias denominações, variando de acordo com cada região. Entre elas: burca, birosca, baleba, buquinha, bila, boleba, burica, bilosca, bugalho, biloca, bulica, bolita etc. Resistindo ao tempo e desafiando até mesmo os brinquedos eletrônicos, elas nos apresentam diversas modalidades de jogos. O "zepes" é jogado a partir de uma figura oval desenhada no chão batido, onde são colocadas as bolinhas para que os jogadores lancem as suas. Eles se posicionam atrás de uma linha tracejada com três a cinco metros distanciada da figura, tentam tirá-las de lá. Alternando-se a vez de jogar entre eles, utilizando o polegar para impulsionar a bolinha, o jogo segue. O objetivo é tirar o maior número de peças possível de dentro do desenho; no "triângulo" a jogada se inicia também atrás da linha, mas durante a rodada algumas regras próprias são respeitadas. O jogador dispara a bolinha a uma distância de um palmo de onde ela parou e tenta raspar as do triângulo, mas com cautela para não permitir que ela pare dentro da figura, o que o eliminaria da rodada. Ele ainda pode atingir a bolinha dos adversários, excluindo-os da rodada e sendo compensado com uma de suas peças; a "bujaca" é uma pequena cova em forma de concha, feita em um terreno limpo e plano. Nessa modalidade, o jogador após iniciar o jogo atrás da linha, tem como objetivo de aproximar sua bolinha ao máximo do buraco para garantir que seja o primeiro a investir nas bolinhas adversárias; no "mata-mata" é jogado aleatoriamente pelo terreno, mas com o intuito de acertar a bola de gude do outro, assim ele se torna obrigado a lhe ceder uma peça.

O vocabulário dos jogadores bolinha de gude tem algumas expressões curiosas. Entre eles podemos citar "de conta" ou "não de conta"- no ato da jogada o jogador usando essa expressão, passa a ter direito a todas as bolinhas que conseguir tirar da figura. A fala negativa é usada pelo adversário; "ultimão pra toda hora" - quando o jogador reivindica ser o último a lançar a bolinha no início de cada rodada. Nessa condição ele tem o privilégio de saber a posição das bolinhas dos oponentes e se defender estrategicamente; " retis" ou "não retis" - o jogador altera sua bolinha de jogo de local, quando algum obstáculo possa impedi-lo de efetuar a jogada (O adversário faz o uso da expressão negativa). A distância da bolinha na nova posição deve corresponder a anterior.

De certa forma o jogo de bola de gude sugere aos seus participantes a necessidade de se organizarem e se prepararem estrategicamente para conseguir bons resultados. Aquele que se dedicar mais à sua meta tem maior chance de obter sucesso, atentando sempre para suas ações como manter as melhores peças para sua coleção, selecionar aquelas mais perfeitas, as mais redondinhas, para efetuar as jogadas, saber qual é o momento certo de parar no jogo, de modo que não se arrisque em desfalcar a sua reserva. Tomando essas medidas, o menino poderá conseguir bons resultados. Tais resultados são conquistados em outras atividades que exigem disciplina. Nos estudos, por exemplo, ao se preocupar com a organização dos livros e dos outros materiais escolares, a dedicação ao tempo necessário para as tarefas recomendadas pelo professor, a obediência às regras da escola na sala de aula e nas áreas internas do colégio... enfim, para todas essas atividades, a disciplina se torna necessária. Todos os meninos, independentemente de sua índole, têm a oportunidade de se tornarem disciplinados. É necessário que estejam sempre atentos às coisas do bem, como se estivessem em uma sala de aula. Organizar-se para alcançar os objetivos e trabalhar para isso é algo desafiante e compensador.

Ainda no século XX, em algum lugar no interior do Brasil, antes mesmo do surgimento da internet, dos celulares ou até mesmo da TV, nos terreiros dos casebres ou nas fazendas, nos becos ou nas praças das cidades interioranas, o jogo de bola de gude sempre propunha a igualdade social entre os jogadores. A meninada quando se reunia numa roda de bolinha de gude, os ânimos afloravam. A cambada toda junta, desde os pequenos "catarrentos" aos marmanjos. Os filhos do "retireiro", o do comerciante, os do professor, os do vereador, o do prefeito, os do lavrador, os do pedreiro, o sobrinho do farmacêutico, o neto do poeta, o filho do Gari, o do encanador, se reuniam em uma roda de “ bolinheiros” para prática dessa encantadora diversão, porém concentrados no jogo para não facilitar a derrota. Os garotos observavam atentamente as mãos, os polegares, os olhos e as bolinhas de gude, uns os dos outros. Nesse momento, não reparavam os furos da camisa do filho do pedreiro, nem os pés descalços do filho do lavrador ou o boné maneiro do filho do comerciante e nem o tênis bonitão do filho do prefeito, mas sim, as bolinhas de gude. Com o passar das horas, eles permaneciam ali juntos, apreensivos, tristes, alegres, derrotados, vitoriosos, incrédulos, esperançosos, orgulhosos, fraternos e sentindo ainda outras sensações que somente a esfera de vidro possibilitava que as sentissem naquele momento. Os braços doíam, as pernas cansavam, doíam as costas e os dedos. As unhas dos polegares dos participantes em contato com a bolinha quando lançada, se desgastava provocando um ferimento até o sabugo.

Ainda naqueles tempos, em grupos de jogadores de bolinhas de gude existia um tipo de graduação interna, onde de acordo com o conhecimento e prática, uns se destacavam mais que os outros. O "café com leite" era um aprendiz que não ganhava nem perdia, mas era preciso ter as bolinhas e o interesse em treinar as jogadas. Era necessário que se esforçasse na prática do lançamento com o polegar, além de se atentar com as malandragens dos adversários. Nesta fase, alguns desistiam e optavam por brincar com carrinhos ou com bola de futebol, por exemplo. O "principiante" era aquele que ainda jogava com a bolinha presa sobre a unha do polegar. Tinha firmeza no lançamento, mas provocava um ferimento que demorava cicatrizar. Ele era capaz de ganhar uma rodada durante uma tarde de jogo. O "agitador" era um jogador complicado para se relacionar, costumava discordar com tudo e com todos, tumultuava a brincadeira, invalidava a jogada quando errava, principalmente se a bolinha alvo estivesse próxima. Seu desejo era se dar bem sempre. O "malandro" era aquele que estava sempre em cima do muro. Poderia até não concordar com determinada situação, mas aguardava o final da discussão para se posicionar. Ele acreditava que mantendo uma boa relação com todos, teria vantagens em jogadas confusas que necessitavam de consenso e decisão. Sua meta era conseguir a maior número de bolinhas possível. O "negociante" era o que tinha peças de todos os tipos. As suas preferidas eram as coloridas as "americanas" e a esfera grande de ferro, também conhecida como "totô". Não tinha bons resultados no jogo, mas enchia a sacola delas através da barganha, que era o seu dom. O "guerreiro" era aquele que conseguia suas peças somente jogando. Geralmente não tinha dinheiro para comprá-las, sendo assim, só lhe restava consegui-las com o seu talento no jogo. Suas duas primeiras bolinhas foram emprestadas pelo negociante e pagas com cinco. A partir daí, mantinha uma quantidade considerável delas. Nunca precisou comprá-las para tê-las e sempre foi o que mais as tinha em maior quantidade. O "intermediário" não era muito talentoso, mas mesmo assim, conseguia algumas bolinhas. Quando não conseguia ganhá-las jogando, as compravam. Acreditava que dessa forma, mantinha o status no grupo. O "craque" era o responsável pelas jogadas incríveis, também nesse jogo. Ele dava show, se divertia e gostava de ser elogiado. Não era um dos que acumulavam peças para coleção, até porque, com a mesma facilidade que tinha para consegui-las, as perdia em trocas com o negociante.

No decorrer dos tempos, grandes revelações vão surgindo na vida dos meninos jogadores de bolinha de gude. Os hábitos e costumes, suas características e manias se confirmam para cada um, já na fase adulta. As mudanças de personalidades acontecem raramente. Em momentos do cotidiano dessas vidas, as situações diversas surgem como aconteciam no jogo. Hoje, algumas das dificuldades enfrentadas em suas vidas, se resolvem com o "rets", quando aqueles meninos jogadores de bolinha se desviam das barreiras deixadas em seus caminhos com o desejo de alcançar suas metas, optando por uma trilha mais favorável, porém correta. Diante dos contratempos certamente surgirão reações de diversos tipos. Naturalmente a formação e a orientação recebidas na infância se tornaram determinantes para o rumo das coisas no futuro. O filho do comerciante daquela região interiorana que no jogo não se posicionava imediatamente diante das discussões do grupo, nos dias atuais se dedica à política no segundo mandato de prefeito. Já Jorginho, o filho do lavador, continua o mesmo guerreiro de sempre, focando na dedicação aos seus objetivos. Atualmente é dono de uma serralheria que atende toda região, fornecendo portões, grades, escadas e outros produtos do segmento. Ele também é conhecido como Jorge, o guerreiro. Todos os dias, às oito horas da manhã, as portas do supermercado se abre no centro daquela aconchegante cidade. Ele é parte de uma rede que predomina nos municípios da redondeza. O comando desse aparato todo é responsabilidade do negociador, aquele que até na adolescência comandava a troca e venda de bolinhas de gude entre os jogadores. Iniciou-se cedo nos negócios, não tem formação no ensino superior, mas conseguiu desenvolver seu dom de empreendedor. A logística nesse tipo de negócio é difícil por ser uma área onde se trata ao mesmo tempo de equipamentos e pessoas. O Tavinho da 608, apelido que ganhou por dirigir um caminhão da Mercedes-benz, modelo 608 B, é um dos motoristas responsáveis pelas entregas. Ele tem sérias dificuldades em se relacionar com os colegas e até mesmo com os clientes, que às vezes lhe chama de sem educação. Já os colegas o chama de agitador. Aquele que na galera não alcançava êxito no jogo, o garoto que se identificava como "intermediário", que raramente alcançava êxito nas jogadas, hoje reluta com seu ego. Ainda não se libertou da ideia de viver em função do que os outros pensam dele. Em sua opinião, um bom status na sociedade é essencial, mesmo com a profissão que exerce e a vida modesta que tem. O "craque" na bolinha e amante dos Shows, não se desviou do destino. Ainda na adolescência se apaixonou pela música e com muita dedicação e luta se tornou um cantor profissional. Na parada de sucesso, o "top hits", suas músicas são as mais ouvidas. É o orgulho para o pai, seu Sebastião, o pedreiro mais antigo da região.

No retorno à cidade natal, normalmente em período de festas regionais, as pessoas aproveitam a oportunidade para se encontrarem. Os amigos da infância que moram na localidade, na capital ou aqueles de outras cidades, se reúnem para botar o papo em dia. Na reunião, recordam os acontecimentos comuns que marcaram suas vidas e que hoje quando analisados percebem-se que contribuíram e contribuem muito para algumas tomadas de decisões pessoais e profissionais, fazendo a diferença. O jogo de bola de gude não fica de fora do assunto. O convívio diário entre os meninos nos terreiros contribuiu consideravelmente com a amizade tão duradoura até os tempos atuais, apesar da distância entre eles. Assim como as bolinhas agarradas pelos dedos durante os jogos, a bola de futebol era inseparável daquela turma de garotos, dividindo o espaço rolando no campo de chão batido. E, é justamente nesse campo, agora gramado, que os amigos se juntam em confraternização. As comemorações acontecem em um churrasco logo após ao futebol. Relaxados, todos se divertem. A grande promessa é manter o evento para os próximos anos com requinte de nostalgia e amizade.

E as crianças e adolescentes dos dias atuais, ainda brincam de bolinhas de gude? E as bolinhas, ainda são vendidas nas lojas de brinquedos? Se elas não são vendidas e perderam o interesse da molecada, provavelmente ficarão esquecidas nas próximas gerações. Espera-se que a batalha acirrada com os jogos e brinquedos eletrônicos, não nos surpreenda com esse triste fim. Talvez os encontros entre os amigos e os antigos adeptos dessa brincadeira incrível, trazendo um assunto a tona através das lembranças, possam acender uma chama e resgatar aquelas tardes animadas nos terreiros. A brincadeira que foi capaz de promover tantas coisas boas, não pode permanecer apenas na memória de alguns. Muitos adorariam a sua permanência nos dias atuais, inclusive algumas crianças.

Dias atrás, Jorge encontrou algumas de suas bolinhas "americanas" enquanto mexia com os trecos no quartinho da bagunça. Não pensou duas vezes em chamar seu filho e lhe contar a história de como as conseguiu. Em seguida, presenteou-o com duas peças. Passados dias, ele percebeu que o menino agia de forma estranha em alguns momentos, pois quando não estava com a mão direita por trás das costas, a mantinha fechada. Ao cair da noite Jorge observou que o garoto havia dormido. Então, aproximou-se de sua cama cuidadosamente, pegou sua mão direita e viu que havia um pequeno ferimento na unha de seu polegar. Não era tão grave, todavia necessitava de acompanhamento para não se agravar. Por outro lado, ele ficou admirado com o interesse do seu garotinho pela bola de gude e decidiu ensiná-lo a praticar a brincadeira, já no dia seguinte.

Sílvio Assunção
Enviado por Sílvio Assunção em 14/02/2019
Reeditado em 03/03/2019
Código do texto: T6575116
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